Chiharu
Capítulo 17
. . .
Água caindo do chuveiro, água
entrando pelo ralo. O típico som que se ouve durante o banho.
Somado a isso, havia o som de
xampu sendo esfregado no cabelo. Shizuka estava na minha frente, sentada no
suporte improvisado que eu venho usando para lhe dar banho. Ele é claramente
feito em casa, dando um suporte para que eu possa usar as duas mãos e tornar a
tarefa de banha-la o mais simples possível.
Mesmo tendo todo o cuidado do
mundo para evitar que o excesso de água escorresse para seu rosto, para manter
a postura e ainda me certificar de que não havia um canto sequer que não
estivesse devidamente asseado, meus pensamentos estavam num lugar completamente
diferente.
Tudo o que eu conseguia pensar
era no meu recente envolvimento com a família Kurou. Bom, não tão recente
assim, eu pensei, com um sorriso seco no rosto.
Um pai que esqueceu sua
função... Um irmão lutando para proteger a família. Duas irmãs que se
afastaram. E também... Uma mãe que foi tirada deles, causando toda essa ruína.
Talvez, se ela estivesse viva, esses quatro poderiam ter uma vida feliz e ser
uma família unida. E essa perda está relacionada diretamente com os meus
pais...
Eu também estou relacionado com
isso. Não que eu me mova por causa da culpa ou como uma forma de redimir meus
velhos... Mas pelo simples fato de sentir que posso fazer alguma coisa... Pelo
simples fato de que aquelas pessoas me escolheram para se apoiar... Seja no
desejo de ajuda ou no depósito de culpa... Eu já estava diretamente relacionado
com isso.
E também...
Kurou Yami... Ela é uma de nós.
Um membro da Rakuen. Apesar de estarmos em termos não muito bem acertados, ela
é minha amiga. E amigos ajudam uns aos outros.
Eu não sei bem o que Keitarou pretende
fazer com sua família... Como ele pretende juntar aquelas duas irmãos, ou como
ele planeja levar sua relação com seu pai. Mas olhando nos olhos e conversando
com aquele irmão que outrora me pareceu violento, mas que na verdade era
impetuoso e superprotetor, só me restava a opção de confiar nele. Confiar que
ele faria as escolhas certas.
O nível de vapor no banheiro me
avisou de que o banho já se prolongava por bastante tempo. Eu me apressei para
termina-lo o mais rápido que consegui, fechando o chuveiro. Indo até o quarto,
fiz uma escolha de roupas que me pareceu bastante acolhedora para aquele dia
frio. Com um sorriso, Shizuka indicou que estava bem confortável. Eu sorri de
volta.
Ah, Onee-chan... As vezes me
pergunto se seu sorriso é puro dessa forma por que eu consigo te proteger de
tudo lá fora ou por que, como você costuma fazer, você apenas me leu mais uma
vez e está tentando me confortar...
De qualquer forma, aquele
continua sendo o sorriso mais puro do mundo.
. . .
Nesse mundo cercado de escuridão, uma voz gritou.
'Espere! Eu vou ajuda-la!'.
Eu reconheci aquela voz. É a voz do garoto que tenta,
incessantemente, me salvar.
Desista...
Era o que eu queria dizer para o garoto. Mas poucas
forças me restavam. Nem todo o ar que consegui juntar nos meus pulmões foi o
bastante para convencê-lo a ir embora.
Como resultado, o garoto logo retornaria com uma outra
tentativa de livrar-me da minha gaiola.
Um brilho, no que parecia ser o céu, e, ao mesmo tempo, o
final daquele mundo.
Na minha frente, cai o que se revelou ser um pingente. Um
azul brilhante, que mudava de forma a cada segundo. Aquele brilho prendeu minha
atenção de uma forma que minha mão, quase inerte e congelada, se moveu para
pega-lo.
'Não desista, tudo bem? Nós logo voltaremos.'
A voz da garota soou calma através das paredes. Por
apenas um segundo, eu senti que a calma da garota me convenceu de que tudo
terminaria bem.
Meu olhar caiu sobre o pingente mais uma vez. Azul. Cor
do céu. Sonho distante.
Liberdade.
'Não desista.'
. . .
Eu continuo tendo sonhos
esquisitos...
Deixando isso de lado, o fim de
semana passou se arrastando. Provavelmente por que eu estava de volta a
monotonia dos meus dias que tinha há algum tempo...
Akakyo parece ter arranjado
algum bico pra esse fim de semana. Ele não conseguiu um trabalho fixo, mas tem
conseguido algum dinheiro com pequenos bicos que as pessoas arranjam para ele.
Aparentemente Kai também estava precisando de dinheiro e foi trabalhar com ele,
apenas por esse fim de semana.
Hanabi e Yuragi disseram alguma
coisa sobre 'fim de semana das garotas'... Acho que Nana acabou sendo arrastada
pra isso, de alguma forma. Se não estou enganado, Yami também acabou indo.
Como resultado, esses dias
foram passados apenas com Shizuka e eu. Eu aproveitei para colocar alguns
estudos em dia, numa tentativa desesperada de salvar meu desempenho escolar.
Shizuka me observava durante os
estudos, sempre curiosa, como se desejasse mais que tudo saber todas aquelas
coisas presentes naqueles livros misteriosos. Quando eu achava que o assunto
era simples ou interessante o bastante, eu sacrificava um pouco do meu
desempenho para ler para ela.
Aquele brilho nos olhos azuis
sempre me cativava. Era um desejo de vida maior do que o de qualquer um.
Eu comecei a imaginar, como
muitas outras vezes já tinha feito, como seria se Shizuka fosse uma garota
normal. Provavelmente ela estaria muito mais interessada em passar o fim de
semana das garotas com as outras meninas, falando de maquiagem, ou sei lá do
que garotas falam, do que aqui, estudando comigo.
Carregado pelo trem de
pensamentos, eu voltei a imaginar a convenção das garotas. Com Yuragi e Hanabi
sendo completamente exóticas, aquilo devia ser realmente algo interessante...
Não, espere aí... Eu não
deveria estar preocupado?
Aquelas duas sempre tem ideias
estranhas... E Yuragi tem uma capacidade enorme de te persuadir - ou obrigar -
a fazer algo. Com Hanabi aceitando qualquer coisa em pensar duas vezes, não sei
se vai haver bom senso que segure alguma loucura de sair daquele lugar.
Não faz mal
se eu ligar, não é?
Um pouco
relutante, eu me estiquei até o telefone e comecei a discar o número do celular
de Nana. O telefone tocou por duas ou três vezes antes de ser atendido.
— Alô?
Makoto?
— Ah, Nana!
Eu liguei pra saber como estão as coisas...
— Ah, está
tudo bem... Quer dizer, mais ou menos...
— Eu
sabia... Yuragi inventou alguma loucura pra vocês fazerem, não foi? Escute,
você não pode cair na conversa dela...
— Não, não
é bem isso... Quero dizer, hum... Ela realmente inventou algo... Ela e a
Hanabi-chan batalharam para ver quem conseguia comer um pote de sorvete mais
rápido...
Sério? E
ela ainda tem coragem de chamar eu e aqueles dois de idiotas?
— Aaaaah, o
que eu faço? Agora elas estão desmaiadas...
—
Desmaiadas?
— Desmaiadas,
paralisadas, eu não sei...
Eu imaginei
uma cena com as duas garotas, sujas de sorvete, atiradas ao chão com as mãos
sobre a cabeça... Uma super reação de comer sorvete rápido demais. Não posso
dizer que elas não mereceram.
— Ah, não
se preocupe, pode deixa-las aí. Elas vão aprender a lição. Além disso, logo elas
voltarão ao normal. Que bom que você e Yami conseguiram ficar fora das loucuras
delas.
— Ah... Sim!
Mas Yami-san não está aqui.
— Não está?
— Não... Um
homem que parecia o pai dela passou aqui para busca-la... Ele não parecia muito
satisfeito...
Eu apertei
o fio do telefone. Aquele homem... O que ele queria, indo atrás dela, dessa
forma? Nada de bom pode sair disso...
— Quanto
tempo isso faz, Nana?
— Não
muito... Alguns minutos.
— Entendi.
Obrigado..!
— Ah, Makoto,
da próxima vez, traga a...
Eu
instantaneamente bati o telefone, e acabei desligando. Tenho certeza que Nana
ficou muito confusa, mas depois eu posso me desculpar com ela. A pressa quase
me fez sair sem avisar Shizuka, mas eu voltei a tempo para falar com ela.
—
Onee-chan, eu estou saindo. Eu não demoro!
Eu não
consegui disfarçar minha afobação, e me apressei para atravessar a porta.
Minha casa
fica mais perto da estação do que a dos Nekogami... Se eu correr, eu vou
alcança-la primeiro...
Não, se ele
estiver usando um carro, é inútil...
Mas por que
diabos eu estou correndo até lá? O que eu vou fazer quando chegar? Gritar com
ele, por pegar a sua filha? Eu nem mesmo sei... Eu nem mesmo sei o que estou
fazendo, mas não consigo parar de correr.
Meus
pensamentos ficaram ainda mais confusos quando eu virei a primeira esquina e me
deparei com a figura de uma garota de cabelos negros parada, na esquina. Ela
parecia estar olhando fixamente o chão. Eu não precisei de muito esforço para
reconhecer que ela era Yami. Eu me aproximei dela, lutando para não demonstrar
meu cansaço.
— Yami-san?
O que está fazendo aqui?
Eu me
aproximei até ficar quatro passos de distância dela. Ela levantou o olhar, e me
olhou com aqueles olhos vermelhos.
Mas algo de
uma cor diferente chamou minha atenção.
Na sua bochecha
esquerda, havia uma marca roxa que subia até o canto do seu olho. Era também
possível ver que o belo rosto da garota estava inchado, e que aquilo era
recente.
Meu coração
quase saltou pela boca quando eu vi aquilo. Eu senti como se outra pessoa
estivesse tentando arranca-lo de dentro de mim.
— O-O que
aconteceu...?
Ela desviou
o olhar, claramente não conseguindo me encarar. Eu pensei em insistir, mas...
Pressiona-la é realmente a coisa certa a se fazer, numa situação assim?
Não, eu não
precisei. Segundos depois, a garota explodiu em choro, soluçando e balançando
os ombros em resposta às lágrimas. Eu dei dois passos para frente e segurei
seus ombros, trazendo ela para perto de mim.
Meus olhos
também encheram de lágrimas. Eu nunca a havia visto desse jeito... Tão frágil,
tão... Quebrada.
Ela se
afastou de mim um pouco depois, usando as mangas para enxugar as lágrimas.
— Desculpe,
Makoto-kun... Eu não queria que me visse assim, mas... Eu não sabia para onde
ir.
— Ele te
deixou assim, no meio da rua?
Yami olhou
para mim, meio que compreendendo que eu entendi o que aconteceu. Ela assentiu
com a cabeça, fazendo com que eu torcesse os lábios em repulsa.
— Eu não
tive coragem de ver as garotas depois disso, então eu... Decidi que seria
melhor procurar por você...
—
Entendi... Vamos entrar um pouco, tudo bem? Vou pegar um pouco de gelo.
— Sim...
Ela
concordou, abatida. Eu a abracei e a levei até em casa.
. . .
— Aqui, vai
doer um pouco.
Eu encostei
o gelo, dentro de um saquinho, no machucado dela. Ela apenas fechou um pouco o
olho esquerdo, em reflexo, mas não reclamou da dor. Que garota forte.
— Quer me
contar o que aconteceu?
Yami passou
mais um tempo calada. Ela se ofereceu para segurar o próprio gelo, então eu
deixei.
— A verdade
é que... Hoje é um certo dia em especial para os Kurou. De acordo com a
tradição da família, é como um "dia da colheita". É quando os membros
da família mostram os frutos do seu trabalho. Eu sabia disso, e ainda assim fiz
outros planos. Isso foi demais para meu pai.
'Sua insolente!'
Eu imaginei
o homem bradando em frenesi contra a filha, e acertando seu rosto, fazendo com
que ela despencasse no chão. Apenas imaginar a cena fez meu sangue ferver. Me
fez querer descontar aquele golpe na mesma moeda.
— Em outras
palavras, ele fez isso por eu ser sua filha desobediente. Heh... É quase como
se eu tivesse conseguido tudo o que queria... Chamei a atenção dele, não
chamei?
Ela deu um
sorriso seco para si mesma, e abaixou o gelo por um segundo. Eu guiei sua mão
de volta para o lugar, tendo certeza de que ela estava colocando aquilo
direito.
Claro, eu
não posso simplesmente condena-lo por bater na sua filha. Mas abandona-la
sozinha, no meio da rua, no clima frio... Não, muito além disso. A frieza que
ele já demonstrava para com ela... Tudo se somou num desejo mal contido de
vingança contra ele.
— Eu meio
que mereci.
— Não diga
isso! Nenhum pai deveria agir assim..! Nenhum pai deveria abandonar seus filhos
da maneira que o seu faz! Ele só faz vocês sofrerem... Provavelmente ele
enxerga isso, e não faz nada... Não consigo perdoa-lo... Yami, você é incrível.
Não se culpe se ele não te reconhece, mas você é magnífica... Você é forte,
inteligente e dedicada. Portanto... Não diga uma coisa assim!
O rosto de
Yami corou.
Ah, o rosto
dela corou...
O meu corou
instantaneamente, em relação. Depois de praticamente me declarar para ela, eu
me dei conta das minhas palavras.
— Ou...
Algo do tipo.
Eu desviei
o olhar forçadamente, depois de falar algo para despistar, que acabou sendo sem
nexo e idiota.
Eu ouvi o
som de um riso coberto, seguido de outros descobertos.
Era o riso
da garota, em resposta a minha onda de vergonha.
— Hah...
Obrigada, Makoto... Eu precisava disso.
Eu sorri em
resposta.
— Não há de
quê.
Eu ouvi o
som de três batidas comedidas na porta. Eu olhei na direção dela, e me levantei
para abrir.
— Quem
será...
Eu andei
até a porta, me perguntando quem poderia ser.
— Você está
esperando alguém?
— Não
exatamente...
Eu girei a
maçaneta, abrindo-a. Eu me deparei com uma silhueta de uma pessoa mais alta e
mais forte do que eu. Sem muito esforço, eu reconheci o rapaz de vestes negras
na minha frente. Era Keitarou.
— Ah,
Keitarou... O que você... Como você...?
As
conclusões para essas perguntas são ' O que você está fazendo aqui ', e, ' como
você chegou até aqui ', embora eu nunca tenha feito-as de fato. Keitarou
parecia que não havia vindo aqui por coincidência. Ele também parecia um pouco
ofegante, como se estivesse caminhando já há algum tempo.
— Makoto...
A Yami...
Ele não
terminou de falar, assim como eu. Mas isso foi por que ele viu Yami, que havia
ficado de pé. Ele olhou direto para o machucado roxo no olho dela, arregalando
os olhos. Por um segundo eu pensei que ele imaginaria que fosse eu, mas percebi
que não seria o caso... Ele era uma pessoa sensata e razoável, sei que não
pensaria dessa forma.
— Yami!
Ele
adentrou minha casa, embora eu não o tenha convidado. Não que eu não quisesse,
ou que tenha alguma intenção de impedi-lo. Simplesmente fiz o que devia e fechei
a porta.
Keitarou
foi direto até a irmã, examinando o machucado roxo. A irmã sorriu, tentando
acalma-lo.
— Não foi
nada. Não se preocupe.
Keitarou
continuou examinando o machucado roxo, e então deu dois passos para trás.
Parecia que agora ele já estava com o fôlego completamente recuperado, e então
se preparou para falar.
— Eu vi que
nosso pai saiu para te procurar... Imaginei que algo assim fosse acabar
acontecendo. Ele nem mesmo levou você para casa... Não me diga que ele te
largou no meio da rua!?
Yami
desviou o olhar, servindo apenas para confirmar as suspeitas do irmão.
— Dessa vez
ele foi longe demais...
Keitarou
apertou o punho direito, juntando sua angústia. Eu pude perceber a frustração
que vinha dele, e tive que sentir compaixão. Ter sentimentos tão negativos pelo
seu próprio pai não é saudável. Por mais que eles fossem uma família, eu
comecei a imaginar se aquela não era a hora de finalmente dar um basta naquilo
tudo.
Keitarou,
com ferocidade no olhar, parecia partilhar da mesma opinião que eu.
— Me
desculpe... A culpa é minha... Mas... Não vai acontecer de novo. Já passou da
hora de acertarmos as coisas.
O jovem se
virou e começou a caminhar em direção a saída. Yami colocou uma expressão
preocupada no rosto.
—
Keitarou...
Consequentemente
passando por mim, Keitarou me olhou. Eu abri a porta, para que ele saísse. Era
como se ele estivesse me agradecendo por cuidar da irmã dele, como ele havia
pedido.
Mas algo me
faz sentir como se...
Eu não sei,
algo apenas me parece errado.
— Keitarou!
— ?
Ele se
virou, já do lado de fora.
— Eu vou
com você.
— Do que
você está falando?
— É que
eu... Já me sinto mais do que envolvido nisso. Eu não sei o que eu posso fazer,
mas... De alguma forma, eu quero poder ajudar a resolver isso.
O jovem olhou
para outro lado, refletindo um pouco.
— De fato,
já envolvemos você mais do que deveria. Realmente, você não deveria...
— Por
favor.
Eu reforcei
ainda mais o meu pedido. Eu estou sério. Keitarou notou isso, e então assentiu
com a cabeça.
— Entendi. Então
vamos.
Eu fui
seguindo ele, e Yami saiu da casa, logo atrás de nós. A primeira coisa que
notei quando olhei par ela foi seu machucado. Um gosto amargo tomou conta da
minha boca, temendo pela segurança da garota.
— Tem
certeza que está bem, Yami-san?
— Sim... Eu
tenho que ir também.
Keitarou
olhou para irmã com um ar de preocupação. Ele não queria envolve-la no
problema, mas sabia que era impossível evitar. Eu olhei na direção do quarto de
Shizuka com o mesmo olhar preocupado. Eu consigo protegê-la hoje, mas ninguém
sabe por quanto tempo. Afastando essas ideias da cabeça, por hora, eu olhei em
direção à estrada.
— Vamos.
. . .
No caminho,
eu fui preenchido com um pensamento.
Sim, aquela
família não se resumia àqueles dois irmãos e seu pai. Ainda havia a irmã de
Yami, aquela com o mesmo rosto que ela. Kurou Raben... Pelo que eu me lembro,
ela se aproximou mais do pai dela depois do incidente com a mãe deles. Isso
quer dizer que há o risco de ela ficar do lado do pai.
Não acho
que isso esteja nos planos de Keitarou... Ele quer manter a família unida, o
que significa que inclui as duas irmãs. Em outras palavras, o que ele vai
fazer, nesse caso?
E você,
Yami? O que você fará? Ela é sua irmã gêmea, e vocês eram tão próximas quando
eram menores...
Tenho
certeza que você quer que aqueles anos dourados voltem. Então, o que você irá
fazer?
. . .
A noite
começou a cair, e já havia quase caído por completo quando chegamos na
residência.
Uma doce
melodia num piano tocava. Era uma melodia calma, lenta, nostálgica. Eu pensei
que seria uma crueldade estragar uma bela melodia com a situação na qual
estávamos prestes a entrar... Ao mesmo tempo, a melodia parecia simplesmente
perfeita pare preceder a ocasião.
Nós
atravessamos o jardim decorado, e demos uma volta até a lateral da casa. Nossos
passos podiam ser claramente ouvidos à medida que andamos pelo suporte de
madeira do lado de fora.
Uma porta
lateral estava aberta, e podíamos ver o interior da sala. Deveria ser uma visão
costumeira para os irmãos, mas era a primeira vez para mim.
A sala era
tipicamente um cômodo de uma mansão japonesa. Podiam-se ver algumas bancadas
com troféus, espadas penduradas nas paredes, algumas fotos. No centro da sala,
estava um piano. Na cadeira em frente ao piano, havia uma garota. A garota de
cabelos negros tocava o piano habilidosamente. Eu já havia ouvido o som daquele
piano uma vez, vindo dessa sala. Era Raben que estava tocando daquela vez,
também...
Sentado, de
olhos fechados, estava um homem. Sua expressão era como se apreciasse e
avaliasse a música. Seus olhos se abriram pouco depois de entrarmos na frente
do cômodo, mostrando que ele havia ouvido nossos passos. Sua expressão mudou
para uma mais séria, quando ele viu o terceiro rosto surgindo - neste caso, o
meu.
A melodia
parou subitamente. Raben se virou para nós. Seu olhar caiu especificamente
sobre Yami, e ela deu um sorriso entretido. Talvez pelo fato de Yami estar com
aquele machucado no rosto, sua irmã estava rindo. Aquela cena me deu calafrios.
Um sorriso
ao ver o sofrimento alheio... Eu nunca havia presenciado um sentimento tão
frio.
—
Keitarou... Por acaso você não sabe que dia é hoje?
— Eu sei
muito bem... Mas eu tinha que sair para colocar as ideias no lugar. Ou você vai
me bater por causa disso também?
O homem de
vestes negras encarou seu filho. Seu olhar misturava decepção, raiva e algo
como... Cautela.
—
Keitarou... Você é um filho prodígio da família Kurou. Não se desvie dessa
forma. A tradição da nossa família estabeleceu esse dia como o dia que colhemos
o fruto do nosso trabalho.
— Dane-se a
tradição da família!
Keitarou
deu um passo à frente e bradou aquela frase num tom que me fez estremecer. O
pai dele se levantou da almofada na qual estava sentado, encarando o filho nos
olhos.
— Você fica
tão preocupado com tradições e sucesso... Tão perdido no seu egoísmo e no seu
ódio, que você fica cego! Olhe um
pouco ao seu redor! Nossa família está destruída!
— Cale-se!
O homem se
exaltou. Eu pude notar o sangue subindo até sua cabeça, fazendo seu rosto ficar
vermelho. Keitarou, talvez intimidado pela autoridade que seu pai ainda tinha
sobre ele, recuou.
— Eu sempre
fiz o melhor por essa família! Sempre insisti para que vocês se tornassem as
melhores pessoas possíveis! As melhores!
Todos vocês eram brilhantes... Mas primeiro você, Yami, e agora você,
Keitarou, escolheram desistir!? Eu não permitirei mais isso. Eu tinha
esperanças que você tomasse juízo ao longo do tempo, mas essa peste está se
espalhando. Eu farei o que tiver que fazer para disciplina-los a partir de
agora.
— Por que
você apenas não desiste, pai?
A voz que
falou logo após as palavras do homem vieram do lado dele. A garota de cabelos e
olhos negros levantou da cadeira, olhando para os irmãos com o que poderia ser
chamado de desprezo.
— Nós dois
sabemos que regar ramos ruins não dará bons frutos... O que nós temos que fazer
com eles é simplesmente arranca-los.
A primeira
pessoa a reagir foi Yami. Ela desviou o olhar. Eu e Keitarou olhamos para ela,
apenas podendo imaginar o que a garota sentia ao ouvir aquelas palavras. Não...
Keitarou com certeza tinha uma boa ideia do que era sentir aquilo.
O também
homem não aprovou as palavras da filha, dando-lhe uma expressão ríspida.
Raben olhou
para o pai, totalmente desentendida do motivo da represália.
— O que
foi? É verdade. Se seus filhos não reconhecem o pai magnífico que tem, deveriam
simplesmente ir embora.
Eu senti
algo agarrando levemente minhas roupas. Yami as segurava pelas pontas dos
dedos, embora as apertassem com bastante força. Ela mordeu o lábio, tentando
evitar as próprias palavras de saírem da boca enquanto ouvia as da irmã. Não
conseguindo aguentar, ela explodiu.
— Chega
disso, Raben! Por acaso você não enxerga o quanto você é patética? Se apoiando
no nosso pai desse jeito, precisando bajula-lo para sobreviver... Você só usa
isso pra se sentir melhor do que os outros! Mas, na verdade, você não passa de
uma garota patética...
Yami... Eu
realmente entendo que você esteja com raiva, mas isso realmente está caminhando
pro lado que você deseja..?
Raben, em
face daquilo, olhou a irmã com ódio. Podia-se ver no olhar dela que ela
reconhecia algumas daquelas palavras como verdadeiras, e incrivelmente
insultantes.
— Não me
compare a você, irmãzinha! Eu sou melhor em tudo o que você já sonhou em fazer.
Eu sou uma verdadeira Kurou! Uma vencedora! Você pode ter o mesmo rosto que eu,
mas nunca foi da família de verdade. Até mesmo a mamãe gostava mais de mim.
Raben virou
o rosto numa direção, e meus olhos acompanharam. Ela estava olhando para um pequeno
altar, no canto do cômodo. Naquele altar, havia uma foto de uma mulher de
cabelos negros e curtos, que pude reconhecer como a mãe das duas.
Eu pensei
que, daquela forma, Raben sentia como se a mãe a estivesse observando enquanto
ela tocava. Como Yami falou, parecia que ela era muito apegada à mãe.
Keitarou
deu um passo à frente, com sua confiança recuperada.
— Você sabe
que isso não é verdade, Raben. A nossa mãe nos amava igualmente... E ela nunca
deixaria nossa família se separar dessa forma se estivesse viva.
O homem de
olhos negros olhou para Keitarou, com seu velho olhar sério, que por muitas
vezes já havia me enojado.
—
Responda-me, Keitarou... Você acha que eu pedi por isso? Acha que eu pedi para
a mãe de vocês morrer? Não... A culpa disso tudo está em outro lugar.
Ele olhou
para mim. Mil nomes surgiram na minha mente para mostrar meu desprezo por ele.
Ele realmente quer me culpar por isso!?
Keitarou
também ficou indignado com aquilo, dando mais um passo para frente.
— Você não
pode viver pra sempre culpando os Alkaev pelo que aconteceu com nossa mãe! Será
que não pode apenas aceitar? Nenhum de nós queria que acontecesse. Mas o Makoto
não tem culpa... Não, ninguém tem culpa. Simplesmente aconteceu.
— Eu não
sou tolo, Keitarou. O garoto não é o verdadeiro culpado. Mas há um. E ele
carrega o mesmo sangue dele. Portanto, ele carrega a responsabilidade. É ele
quem deve arcar com isso.
Não é a
primeira vez que eu penso isso, mas eu sinto como se o homem não estivesse
olhando para mim, e sim, para outra pessoa. Ele falou que eu tenho os olhos do
meu pai... Então, para ele, é como se ele olhasse diretamente para meu pai.
Para ele, toda vez que me olhava e me culpava, ele estava colocando a culpa do
meu pai.
Isso é
imperdoável.
Agora foi
minha vez de apertar os punhos.
—
Responsabilidade!? Quem é você para me falar disso!? Olhe a sua volta! Seus
filhos estão contra você, e ao meu favor! Você deixou sua família morrer, e
quer colocar a responsabilidade em cima de mim!? Não sou eu quem está vivendo
no passado, me escondendo como um rato!
O sangue
quente subiu a minha cabeça. O homem de vestes negras me olhou, cravando em
minha testa uma sentença de morte. Ele veio em minha direção. No caminho,
agarrou um objeto inconfundível: uma katana, feita de madeira.
Ele a jogou
na minha direção, fazendo com que o objeto parasse sob meus pés.
— Pegue, se
você for homem.
Sem pensar
duas vezes, eu me estiquei na direção da espada. O sangue quente me fez agir
impulsivamente, deixando-me tomar completamente pelo desejo de acertar o homem
com aquilo. O que me parou, no entanto, foi a mão célere de Keitarou, que
agarrou o cabo da espada antes que eu tivesse a chance de toca-la.
Ele me
olhou de canto de olho, com uma expressão dura em sua face.
— Me
desculpe, Makoto. Essa luta é minha. Além disso, essa não é a sua família, você
não deveria se meter nesses assuntos.
Eu abri
minha boca para responder, mas pensei duas vezes.
Quero
dizer, ele me chamou até aqui, e aquele homem ainda havia me provocado... De
primeira vista, eu tinha todos os motivos para questiona-lo.
Mas... O
que ele falou é verdade. A família deles está num momento crítico, e eu não sou
parte dela. Eu não deveria estar me metendo...
Eu fiquei
tão preocupado em ajudar que acabei me metendo demais... Talvez isso também
tenha acontecido com os Nekogami, sem eu perceber? Não, nesse caso é
diferente... Eu não agi pensando em ajudar, mas apenas pensando em retaliação
contra aquele homem. Eu agi de forma egoísta e impensada.
Mas por
qual motivo eu estou aqui, então? Se eu não posso ajudar, apenas assistir...
Foi então
que eu me dei conta. Eu estou aqui como um símbolo. Eu sou tudo o que é
contrário aquele homem, em personalidade, em significado. Isso quer dizer que
eu sou como um marco que mostra a posição de seus filhos contra o pai. Eu sou
como um estandarte daquela empreitada.
Agora
apenas me resta confiar em Keitarou, que subia na madeira do cômodo e tomava
posição de combate. Seu pai o encarava com o respeito de quem sabia que
enfrentaria um grande adversário, mas ainda tinha aquele tom superior no ar.
Ele pegou uma segunda espada e entrou em posição idêntica a do filho, mostrando
que os dois haviam recebido o mesmo treinamento.
— Você
pensa que pode me vencer, Keitarou? Eu, seu pai? Eu ensinei tudo o que você
sabe.
— Não, pai.
É justamente por você não ter ensinado tudo que eu estou aqui, hoje. Tivemos
que aprender algumas coisas sozinhos, ao longo dos anos. Será que você está
preparado para ver?
Meu olhar
se desviou dos dois homens e foi parar em Yami. Ela havia levado uma mão ao
centro do peito, e agora segurava minha camisa com ainda mais força. Ela estava
preocupada. Eu segurei sua mão, tentando acalma-la, embora parecesse ter tido
muito pouco efeito.
Em seguida,
observei Raben. Ela ainda carregava aquele mesmo sorriso entretido de quem
estava se deliciando com aquela situação. Pai e filho estavam prestes a lutar,
e, ainda assim, ela estava sorrindo.
Os dois
guerreiros giravam num círculo, analisando o oponente.
— Você acha
que pode derrotar o nosso pai, Keitarou? Lembre-se, ele é um campeão. Você é
apenas alguém que desistiu no meio do caminho.
Keitarou
esperou girar até uma posição onde podia ver Raben claramente, sentada na
cadeira do piano.
— Raben, eu
não sei como podemos resolver isso... Mas, nós não podemos mais viver aqui,
nessas condições... Até que nosso pai abra os olhos, você deve vir com a gente.
Raben riu,
como se acabasse de ouvir uma piada.
— Eu não
estou indo a lugar nenhum, irmão tolo... Afinal, você será derrotado bem aqui.
Keitarou
parou e firmou sua posição, ignorando as palavras de desencorajamento. O pai
dele fez o mesmo, mudando levemente sua base de combate. Quase que
instantaneamente, Keitarou respondeu, mudando a dele também. Eles estavam
estudando um ao outro, respondendo um ao outro com defesas e ofensas
apropriadas.
E então, a
voz feminina ecoou mais uma vez.
— Só é uma
pena... Que a mamãe está olhando.
Keitarou
desviou o olhar, buscando um ponto acima do seu ombro esquerdo, atrás dele. Ele
olhava para o pequeno altar, onde a foto da mulher sorridente parecia o
observar.
Como a
víbora que é, o homem não perdeu essa oportunidade.
Se
aproveitando da distração do filho, ele avançou com a Katana acima da cabeça,
desferindo um golpe de cima pra baixo. O espadachim das sombras quase não teve
tempo para responder, executando um bloqueio lateral que não absorveu
perfeitamente o golpe, e ele deu passos para trás. A fim de ganhar espaço, ele
contornou o pai pela lateral, quase não se aguentando em pé devido a onda de
golpes que recebeu.
Isso não é
bom... Se continuar assim, ele vai perder...
— Eu dei a
vocês liberdade demais... A partir de agora, vou executar melhor meu dever de educar
vocês, e de punir vocês!
Um golpe
atrás do outro, o homem não mostrava piedade. Apenas após vários segundos
Keitarou conseguiu se recompor e lançou seu primeiro ataque. A partir dali,
eles trocaram golpes, sempre bloqueados pela espada do adversário. Para
qualquer um que olhasse, podia-se notar que ambos eram adversários eram igualmente
habilidosos. O homem mantinha melhor o equilíbrio, a calma, e tinha ataques
mais ferozes. No entanto, Keitarou conseguia uma velocidade maior, se dava
melhor nos confrontos de força e com certeza teria uma maior resistência se o
combate se prolongasse.
Yami levou
a mão até a boca, e lágrimas se formaram em seus olhos. Ela se aproximou de
mim, praticamente abraçando meu braço esquerdo.
— Não era
pra ser assim... Por que as coisas tinham que terminar assim!?
Raben olhou
para irmã, e deu aquele sorriso debochado.
— Não olhe
pra ela desse jeito...
Eu disse
aquilo mais para dentro do que para fora, embora a garota tenha conseguido
ouvir.
Não, o
correto é dizer que eu gritei aquela frase tão alto dentro de mim, que, sem eu
querer, ela escapou através da minha voz.
— Por que?
Ela é uma perdedora, e eu sou uma vencedora... Ela diz que eu não consigo
aceitar o passado, mas olhe para mim, irmãzinha! Eu sou melhor em tudo o que
você um dia pensou em fazer.
— Então por
que... Sou eu quem tem alguém para me confortar enquanto eu choro?
Raben
pareceu extremamente atingida pelas palavras de Yami, que deu um passo à
frente. Ela agora carregava um olhar muito parecido com o de Keitarou.
Determinado, mas cheio de ódio.
Um olhar
que eu não gosto.
— O que
você pensa que está dizendo?
— Você acha
que eu não ouvia? No aniversário da nossa mãe, e em todas as outras datas...
Você chorava a noite toda, debaixo das suas cobertas. Como uma criança
patética.
Ei, Yami...
— É por
isso que você quer ser aceita, não é? Quer ter alguém para cuidar de você...
Mas você não tem ninguém, Raben. Você nunca será melhor do que eu. A fracassada
é você.
Não,
Yami-san... Se você falar dessa forma, vai parecer que você se aproximar de
mim, de todos os meus amigos, foi apenas um jeito de ser melhor que sua irmã...
Vai parecer
que nosso beijo foi algo falso...
Onde está
aquela garota dos olhos vermelhos, aquela garota misteriosa, que me deixa
totalmente desnorteado com sua voz, com seu olhar...
Yami-san,
eu não quero essa garota do jeito que ela está agora. Se essa for a sua
verdadeira você, eu não vou amar te conhecer. Eu não vou poder me apaixonar por
você da forma que me apaixonei...
Eu quis
acreditar que você queria se dar bem com sua irmã, mas você se deixou tomar
pelo ódio...
Não, desde
o início, você já estava tomada por ele...
Yami, mesmo
que talvez você não me corresponda, eu me apaixonei pela outra você.
É por isso
que, apesar de tudo...
Eu ainda
acredito que os sorrisos que você deu quando estava conosco, foram sorrisos
sinceros.
Portanto...
Por favor,
pare...
Eu
discursei, apenas mentalmente. Tudo o que eu fiz, tudo aquilo que eu pensei, se
resumiu a um pequeno gesto. Eu segurei Yami pela palma da mão, apertando aquela
mão. Aquela mão que salvou a minha vida.
Yami-san,
se eu pudesse fazer algo por você, como você fez por mim...
Gostaria
que pudesse te salvar, apenas segurando a sua mão.
Yami
continuaria falando, mas ela fez um silêncio vago. Ela entendeu o que eu quis
dizer. Entendeu, que com aquelas palavras, ela estava apenas machucando.
Machucando sua irmã, machucando a mim.
Eu tomei um
tempo para observar o combate, que ainda estava acirrado. As mãos dos dois
combatentes já deviam estar doloridas, assim com seus braços, mas eles
continuavam golpeando com mais precisão do que nunca. Parecia que a fadiga
havia colocado o homem mais velho sob grande pressão, de forma que quase todos
os ataques eram feitos pelo filho.
Nesse
ritmo, ele vai vencer.
No entanto,
a garota de cabelos negros na minha frente, com o rosto vermelho e olhos de
quem estava prestes a chorar, cerrou os punhos, juntou ar nos pulmões e bradou
num tom alto que qualquer um na cidade deveria ser capaz de ouvir.
— Por que
você não simplesmente morre!?
Eu senti
Yami levar uma pontada muito forte com aquelas palavras. Da mesma forma, outra
pessoa pausou. Keitarou estava prestes a desferir um golpe que poderia decidir
a batalha, mas ele travou. Ele travou em face da realidade que havia sido
jogada em cima da cara dele. Despertando, menos de um segundo depois, ele se
deparou com uma investida violenta de ataques do homem mais velho. Os pés de
Keitarou não conseguiram acompanhar a velocidade, e, a medida que caminhavam
para trás, tiraram-lhe o equilíbrio.
Até então
eu não havia notado, mas no momento que Yami arregalou os olhos, eu vi.
Eles
estavam...
— Mamãe!
Yami
gritou, confirmando meu pensamento. Keitarou, nesse momento, se aproximava
perigosamente do altar onde a foto de sua mãe estava. Raben também se virou,
observando a cena. Eu pude ver seus olhos se enchendo de lágrimas, à medida que
ela levantava da cadeira.
Por algum
momento, aquela cena passou a ser vivida em câmera lenta. Yami estendia a mão
na direção do altar, com um gesto inútil de quem queria que a luta parasse.
Raben, em total desespero. Keitarou olhou para o altar por apenas um segundo.
Eu posso
apenas imaginar o que se passou na cabeça dele. Talvez ele tenha pensado que a
família dele estava prestes a desmoronar de vez. Talvez ele tenha pensado que,
naquele momento, era como se o pai dele estivesse matando sua mãe. Como se os
anos que ele passou deixando que sua família se separasse fosse como se ele
estivesse destruindo a memória dela.
— Você é um
filho ingrato! Mesmo depois de todos esses anos, tudo o que batalhei para que
vocês se tornassem pessoas de sucesso! É assim que você me retribui!?
Seu pai
continuava a falar, a medida que golpeava. Cego, ele mesmo não conseguiu ver a
situação em que estava. Ele mesmo não conseguiu enxergar que ele estava quase
destruindo a memória da mulher que, se cuja morte foi o bastante para
devasta-lo, ele com certeza amava.
'Se ele não
pode, eu devo protegê-la.'
Talvez por
isso, por esse pensamento, que, naquele momento, Keitarou encontrou forças. Ele
conseguiu, de alguma forma, se apoiar, fazendo com que seu pé e seu corpo
parassem a milímetros do altar.
— AAAAAAAH!
Bloqueando
o golpe do pai, Keitarou usou de toda sua força para girar a espada e impelir
seu corpo para frente. O resultado foi que uma das espadas voou metros no ar,
caindo do lado de fora, no jardim.
Quando meu
olhar retornou para a cena, eu vi um homem ajoelhado no chão. Ele havia dado
três passos para trás antes de desabar, derrotado. Raben estava atônita, sem
acreditar no que havia acabado de ver. Seu pai, o maior vencedor de todos,
derrotado por seu irmão.
Keitarou
lentamente deixou a postura de combate e largou a katana no chão, deixando que
ela fizesse um baque. Ele arfava, revelando a pressão pela qual seu corpo havia
passado. Seu pai olhava o chão fixamente. Sua irmã, ainda incrédula,
pronunciava palavras trêmulas.
— Não pode
ser... O papai... Perdeu?
Keitarou
passou por ele, sem mesmo olhar em seu rosto. Eu vi o que pareciam ser lágrimas
disfarçadas escorrerem de seus olhos, mas o espadachim negro apressou em
enxuga-las e o molhado delas se confundiu com o molhado de suor do seu rosto. Ele
foi até o meu lado e o de Yami, certificando-se de que a irmã estava bem. Em seguida,
ele olhou para Raben.
— Eu não
espero que você compreenda de cara, Raben... O que você falou é certo. Não
podemos mais viver juntos. Passamos tempo demais envenenando uns aos outros...
Por isso, venha conosco. Vamos reconstruir nossa família...
— Não!
Raben levou
as mãos até as orelhas, cobrindo-as como se fossem protetores. Isso apenas
serviu para mostrar o quão danificada estava a garota. O quanto a pressão a
fizeram perder o controle, pelo menos naquela situação.
— Eu não
quero isso!
Keitarou
deixou que o ar escapasse seus pulmões. Era como se ele houvesse desistido.
Aceitado o destino que a irmã escolheu.
Em seguida,
ele olhou para seu pai. O homem parecia repetir um mantra para si mesmo.
— Eu
falhei... Eu falhei...
De início,
eu não compreendi muito bem. Então, eu vi as lágrimas. O homem estava chorando.
Mas não parecia ser pelo fato de ter sido derrotado... Não, ele não é do tipo
de pessoa que choraria apenas por isso.
'Eu falhei,
eu falhei.'
Essas
palavras se repetiram na minha mente.
Era como
se, como pai, o homem reconhecesse sua falha.
Ele não
pode achar de verdade que tem sido um bom pai todos esses anos...
Ele não
pode achar que realmente esteve fazendo a coisa certa...
Ou será que
ele realmente acredita que, da forma que criou seus filhos, ele os estava
criando para serem boas pessoas? Criando para que vencessem na vida?
Se for esse
o caso, isso o colocaria no patamar de 'pai imperfeito'.
Se for esse
o caso, aquelas lágrimas são um pedido de desculpas à única pessoa que estava
sorrindo naquele local.
'Eu falhei,
destruí nossa família. Eu falhei, não consegui cuidar deles.'
Não me
entenda mal, não é como se eu estivesse sentindo compaixão pelo homem... Não
que a visão dele caído me traga algo além de um sentimento de satisfação interna.
Mas, mais
uma vez, eu pensei se aquilo havia tomado o rumo certo. Se as coisas haviam
realmente caminhado para o lado que Keitarou queria...
Nenhum
deles queria se separar. Apesar disso, eles nunca estiveram juntos.
Keitarou
pegou sua irmã pelo braço, lançando-lhe uma expressão significativa.
— Vamos.
Yami olhou
para seu pai e sua irmã, mas foi preenchida pela expressão dura de quem tenta
parecer forte. Ela acompanhou o irmão, em direção a saída.
Perdido em
pensamentos, eu fui o único que ficou ali, parado. Está mesmo tudo bem em deixá-los
desse jeito?
— Vamos, Makoto-kun. Deixe-os
aí.
Palavras frias, vindas da
garota dos olhos vermelhos. Com um suspiro, me virei e caminhei até o portão.
Depois daquele instante, não olhei mais para trás.
Aquele homem havia sido
destronado, derrotado por seu próprio filho. Era como se a alcateia tivesse
conseguido um novo líder.
A despedida daquela família
fora como vieram convivendo, todos esses anos.
Como lobos.
. . .
Nós caminhamos através da
noite. Poderíamos ter pego o trem, se quiséssemos, mas acho que simplesmente
ninguém estava no clima para se aproximar de tantas pessoas assim. Aproveitamos
o frio ameno para caminhar toda a distância até a minha casa. Yami ficou
aguardando na esquina, depois que Keitarou me chamou até um pouco mais longe.
— Vai demorar até que as coisas
voltem ao que eram no passado... Se é que um dia vão voltar.
— Sim...
Sem mais palavras, eu apenas
pude concordar.
— Makoto, a verdade é que
preciso pedir um favor.
— Um favor?
— A verdade é que... Tudo foi
muito repentino, e eu ainda não tenho um lugar para vivermos. Eu tenho
trabalhado num lugar, mas ainda não recebi o primeiro pagamento. Eu tenho um
lugar para ficar na casa de alguns conhecidos, mas acho que não vai ser um ambiente
muito bom para Yami... Principalmente pelo fato de que, comigo no trabalho, ela
vai ficar desemparada... Então, você é a única pessoa... Não, o único amigo que
me resta para confiar e pedir isso...
Tudo ainda não tinha se fixado
direito na minha mente, mas a ideia dele era clara...
Ele fez uma reverência que me
fez dar um passo para trás.
— Por favor, cuide da minha
irmã.
— ...Eh?
Meu cérebro demorou dois
segundos para processar sobre quem ele estava falando. Kurou Yami. Eu e ela...
Morando juntos... Na minha casa...
Um homem, e uma mulher.
Sozinhos.
Além disso, depois daquele
beijo...
— Eeeeeeeeh!?
Meu rosto corou imediatamente
ao pensar aquilo. O rosto sombrio de Keitarou decifrou meus pensamentos
indecentes e me encarou com um instinto assassino. Não que estivesse tão
difícil assim de ser decifrado...
Respirando para acalmar meus
batimentos e não cometer um erro que poderia tirar minha vida, levei alguns
segundos para falar.
— Você está falando sério?
Minha pergunta acabou se
tornando retórica, visto que ele apenas continuou me encarando.
Ele está realmente falando
sério em deixar a irmã dele comigo... Eu não sei se o que ele disse sobre me
admirar e me respeitar vai até esse ponto ou se ele realmente não tem bom senso
enquanto irmão mais velho...
No entanto, ele disse que eu
era seu amigo.
Meu olhar caiu sobre a garota
dos olhos vermelhos. Como se ela soubesse do que se tratava, ela me olhou de
volta. Meu coração acelerou, instantaneamente. Certamente, não é como se eu não
quisesse...
Viver com ela...
— Eu vou... Cuidar dela.
Viver junto com ela...
Keitarou assentiu com a cabeça,
como se agradecesse.
É, acho que é algo a se
considerar.
. . .
Keitarou foi até a irmã, me
deixando na frente da minha porta. Eu pude apenas ver os gestos dos dois, sem
ouvir o que estavam falando, mas entendi que Keitarou estava explicando o que
havíamos acabado de decidir. Contrário às expressões costumeiras que faziam a
garota parecer com uma donzela nobre, o rosto dela corou e ela virou
bruscamente na minha direção. Claramente a ideia a deixou tão embaraçada quanto
a mim. Keitarou olhou para mim, e depois de volta para a irmã.
Ele proclamou meia dúzia de
palavras e fez um gesto com o dedo indicador passando pela garganta.
Ah, cara... Isso não pode ser
um bom sinal.
Quando Keitarou trouxe Yami até
a porta da minha casa, de alguma forma senti como se fosse o pai trazendo uma
noiva até o altar. Eu engoli a seco. Meus pensamentos idiotas me fizeram ficar
ainda mais nervoso.
Calmo, ou pelo menos tentando
aparentar estar, Keitarou olhou para mim.
— Então, eu deixo ela aos seus
cuidados.
— A-Ah! S-Sim!
— E, Yami... Lembre-se...
Ele repetiu a sinalização,
agora com uma sombria aura ao redor de seus olhos.
Meu rosto ficou sem ar e acho
que minha pele ficou mais roxa do que o limite aceitável...
Você não precisa repetir...
. . .
Sobramos apenas eu e Yami no
silêncio da noite. O tempo que levei para girar a chave naquele momento pareceu
mais longo do que o de costume. Segundos depois, eu abri a porta, dando espaço
para ela entrar.
— Ah, por favor...
— Com licença...
Eu pude notar que ela se
esforçava para manter-se cordial mesmo numa situação com aquela. Depois da
garota entrar, eu fechei a porta e a tranquei. Com um gesto, indiquei para que
ela se sentasse. A primeira coisa que fiz depois disso foi avisar a Shizuka que
eu havia chegado. Minha irmã estava dormindo. Serena, calma, despreocupada.
Parecia tanto com um anjo que eu nem mesmo ousei acorda-la. Com um sorriso bobo
no rosto, eu me afastei e me voltei para a sala.
Yami estava sentada no sofá,
encarando um ponto fixo no chão. Eu cocei a cabeça e me aproximei.
— Então... Você quer algo pra
beber?
— Ei, Makoto-kun...
— Ah, sim!?
Eu fiquei ereto e respondi
exageradamente. Com o passar dos segundos, a tensão nos meus ombros começou a
ceder e eu me acalmei.
— Ainda não conversamos sobre
aquilo... Sabe... O beijo.
— Ah, sim...
Claro, eu corei. Aquele momento
era apenas uma lembrança, algo que parecia surreal. Mas ouvi-la falar dessa
forma era a comprovação de que aquilo havia acontecido. Eu olhei para ela,
nervoso para saber o que ela queria dizer.
— Sabe... Eu realmente gosto de
você. Até mesmo mais do que como amigo.
Foi um bom começo... É um bom
sinal, Makoto!
— Mas...
Ah, não... Mas...?
— Nossa situação agora é um
pouco complicada... Nós somos jovens, e... Eu não quero que nós dois façamos
alguma besteira, morando juntos desse jeito... Por isso eu acho que seria
perigoso se, você sabe...
Não, eu não sei direito... Do
que ela exatamente está falando?
Ela não pode estar seriamente
considerando que, se nós namorássemos, e vivendo juntos desse jeito, nós...
Nós...
— De qualquer forma... Eu acho
que devíamos continuar apenas como amigos... Tudo bem?
Aquelas palavras me martelaram
no peito. Meu coração parou por um segundo. Independente dos motivos, ainda era
uma dor ter que ouvir aquilo.
Apenas amigos, é?
Eu nunca havia realmente estado
tão próximo de uma garota para ser rejeitado dessa forma, mas posso dizer que
não é a melhor sensação do mundo. Sem saber direito o que dizer, eu apenas
fiquei calado por um tempo.
— S-Sim, eu acho... Você está
certa. Nós somos muito jovens...
— Que bom que entende.
Yami sorriu, e eu sorri de
volta. Um sorriso torto e sem jeito, mas o melhor que eu consegui colocar no
rosto.
Eu não sei se me sinto
decepcionado ou aliviado...
. . .
Ainda meio desnorteado, eu
mostrei a garota o meu quarto. Eu agradeci minha recém-ganha organização -
depois de muito ouvir broncas de Nana - e o fato do quarto estar devidamente
limpo e arrumado.
— Você pode dormir aqui, por
esses tempos.
— No seu quarto? Não, eu não
quero incomodar...
— Ah, não se preocupe... Se não
quiser, pode ficar aqui só essa noite, e eu arrumo um quarto pra você amanhã...
— Sim, eu prefiro que faça
isso. Obrigada.
Eu sorri para a garota, me
esforçando para ser um bom anfitrião.
— Bom, se precisar de mim, eu
vou estar no quarto da Shizuka. Boa noite, Yami-san.
— Boa noite, Makoto-kun.
Eu dei um pequeno aceno com a
mão, e depois me virei.
Que idiota. Quem dá um aceno
com a mão dessa forma? Você não vai embora, apenas vai dormir.
Me martirizando mais uma vez,
eu peguei um futon num armário que tinha num quarto vazio e o arrumei ao lado
da cama de Shizuka.
. . .
Ela continuava ali, dormindo
calmamente. Felizmente eu não a acordei enquanto arrumava as coisas. Sorri mais
uma vez ao relembrar o quanto seu rosto me lembrava o de um anjo.
— Boa noite, Onee-chan.
Eu sussurrei e repousei meu
rosto no travesseiro. Naquela noite, eu tardei à dormir. Eu não conseguia parar
de pensar no que aconteceu. Na luta, na discussão, no fato de Yami agora estar
vivendo comigo...
A imagem do pai dos três
irmãos, ajoelhado, caído, derrotado, continuava me vindo à mente, seguida da
expressão sombria de Keitarou ao deixa-lo ali.
Uma relação de ódio, mesmo
sendo pai e filho...
Yami certamente estava tentando
superar isso, também. Ela parecia bem conversando comigo há pouco, mas sei que
ela deve estar sofrendo. Até mesmo não estranharia se encontrasse ela chorando,
deitada, nesse momento.
E também, ninguém pode
culpa-la. As coisas não deveriam ter acabado assim. Algo desse tipo nem mesmo
deveria ter começado.
A forte garota tentava
aparentar estar bem, embora estivesse na maior luta de sua vida.
Isso continuou ecoando e se
repetindo em meio aos meus pensamentos, à medida que o sono me consumia.
E, juntamente, a frase que
acontecera apenas na minha cabeça, parecia marcar muito bem o nome da família
Kurou.
Aqueles quatro...
Eles eram exatamente... Como
lobos.
. . .
Chiharu - 17
Como lobos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário