Chiharu - Capítulo 17



Chiharu



Capítulo 17


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Água caindo do chuveiro, água entrando pelo ralo. O típico som que se ouve durante o banho.

Somado a isso, havia o som de xampu sendo esfregado no cabelo. Shizuka estava na minha frente, sentada no suporte improvisado que eu venho usando para lhe dar banho. Ele é claramente feito em casa, dando um suporte para que eu possa usar as duas mãos e tornar a tarefa de banha-la o mais simples possível.

Mesmo tendo todo o cuidado do mundo para evitar que o excesso de água escorresse para seu rosto, para manter a postura e ainda me certificar de que não havia um canto sequer que não estivesse devidamente asseado, meus pensamentos estavam num lugar completamente diferente.

Tudo o que eu conseguia pensar era no meu recente envolvimento com a família Kurou. Bom, não tão recente assim, eu pensei, com um sorriso seco no rosto.

Um pai que esqueceu sua função... Um irmão lutando para proteger a família. Duas irmãs que se afastaram. E também... Uma mãe que foi tirada deles, causando toda essa ruína. Talvez, se ela estivesse viva, esses quatro poderiam ter uma vida feliz e ser uma família unida. E essa perda está relacionada diretamente com os meus pais...

Eu também estou relacionado com isso. Não que eu me mova por causa da culpa ou como uma forma de redimir meus velhos... Mas pelo simples fato de sentir que posso fazer alguma coisa... Pelo simples fato de que aquelas pessoas me escolheram para se apoiar... Seja no desejo de ajuda ou no depósito de culpa... Eu já estava diretamente relacionado com isso.

E também...

Kurou Yami... Ela é uma de nós. Um membro da Rakuen. Apesar de estarmos em termos não muito bem acertados, ela é minha amiga. E amigos ajudam uns aos outros.

Eu não sei bem o que Keitarou pretende fazer com sua família... Como ele pretende juntar aquelas duas irmãos, ou como ele planeja levar sua relação com seu pai. Mas olhando nos olhos e conversando com aquele irmão que outrora me pareceu violento, mas que na verdade era impetuoso e superprotetor, só me restava a opção de confiar nele. Confiar que ele faria as escolhas certas.

O nível de vapor no banheiro me avisou de que o banho já se prolongava por bastante tempo. Eu me apressei para termina-lo o mais rápido que consegui, fechando o chuveiro. Indo até o quarto, fiz uma escolha de roupas que me pareceu bastante acolhedora para aquele dia frio. Com um sorriso, Shizuka indicou que estava bem confortável. Eu sorri de volta.

Ah, Onee-chan... As vezes me pergunto se seu sorriso é puro dessa forma por que eu consigo te proteger de tudo lá fora ou por que, como você costuma fazer, você apenas me leu mais uma vez e está tentando me confortar...

De qualquer forma, aquele continua sendo o sorriso mais puro do mundo.


. . .


Nesse mundo cercado de escuridão, uma voz gritou.

'Espere! Eu vou ajuda-la!'.

Eu reconheci aquela voz. É a voz do garoto que tenta, incessantemente, me salvar.
Desista...

Era o que eu queria dizer para o garoto. Mas poucas forças me restavam. Nem todo o ar que consegui juntar nos meus pulmões foi o bastante para convencê-lo a ir embora.
Como resultado, o garoto logo retornaria com uma outra tentativa de livrar-me da minha gaiola.

Um brilho, no que parecia ser o céu, e, ao mesmo tempo, o final daquele mundo.

Na minha frente, cai o que se revelou ser um pingente. Um azul brilhante, que mudava de forma a cada segundo. Aquele brilho prendeu minha atenção de uma forma que minha mão, quase inerte e congelada, se moveu para pega-lo.

'Não desista, tudo bem? Nós logo voltaremos.'

A voz da garota soou calma através das paredes. Por apenas um segundo, eu senti que a calma da garota me convenceu de que tudo terminaria bem.

Meu olhar caiu sobre o pingente mais uma vez. Azul. Cor do céu. Sonho distante.

Liberdade.

'Não desista.'

. . .

Eu continuo tendo sonhos esquisitos...

Deixando isso de lado, o fim de semana passou se arrastando. Provavelmente por que eu estava de volta a monotonia dos meus dias que tinha há algum tempo...

Akakyo parece ter arranjado algum bico pra esse fim de semana. Ele não conseguiu um trabalho fixo, mas tem conseguido algum dinheiro com pequenos bicos que as pessoas arranjam para ele. Aparentemente Kai também estava precisando de dinheiro e foi trabalhar com ele, apenas por esse fim de semana.

Hanabi e Yuragi disseram alguma coisa sobre 'fim de semana das garotas'... Acho que Nana acabou sendo arrastada pra isso, de alguma forma. Se não estou enganado, Yami também acabou indo.

Como resultado, esses dias foram passados apenas com Shizuka e eu. Eu aproveitei para colocar alguns estudos em dia, numa tentativa desesperada de salvar meu desempenho escolar.

Shizuka me observava durante os estudos, sempre curiosa, como se desejasse mais que tudo saber todas aquelas coisas presentes naqueles livros misteriosos. Quando eu achava que o assunto era simples ou interessante o bastante, eu sacrificava um pouco do meu desempenho para ler para ela.

Aquele brilho nos olhos azuis sempre me cativava. Era um desejo de vida maior do que o de qualquer um.

Eu comecei a imaginar, como muitas outras vezes já tinha feito, como seria se Shizuka fosse uma garota normal. Provavelmente ela estaria muito mais interessada em passar o fim de semana das garotas com as outras meninas, falando de maquiagem, ou sei lá do que garotas falam, do que aqui, estudando comigo.

Carregado pelo trem de pensamentos, eu voltei a imaginar a convenção das garotas. Com Yuragi e Hanabi sendo completamente exóticas, aquilo devia ser realmente algo interessante...

Não, espere aí... Eu não deveria estar preocupado?

Aquelas duas sempre tem ideias estranhas... E Yuragi tem uma capacidade enorme de te persuadir - ou obrigar - a fazer algo. Com Hanabi aceitando qualquer coisa em pensar duas vezes, não sei se vai haver bom senso que segure alguma loucura de sair daquele lugar.

Não faz mal se eu ligar, não é?

Um pouco relutante, eu me estiquei até o telefone e comecei a discar o número do celular de Nana. O telefone tocou por duas ou três vezes antes de ser atendido.

— Alô? Makoto?

— Ah, Nana! Eu liguei pra saber como estão as coisas...

— Ah, está tudo bem... Quer dizer, mais ou menos...

— Eu sabia... Yuragi inventou alguma loucura pra vocês fazerem, não foi? Escute, você não pode cair na conversa dela...

— Não, não é bem isso... Quero dizer, hum... Ela realmente inventou algo... Ela e a Hanabi-chan batalharam para ver quem conseguia comer um pote de sorvete mais rápido...

Sério? E ela ainda tem coragem de chamar eu e aqueles dois de idiotas?

— Aaaaah, o que eu faço? Agora elas estão desmaiadas...

— Desmaiadas?

— Desmaiadas, paralisadas, eu não sei...

Eu imaginei uma cena com as duas garotas, sujas de sorvete, atiradas ao chão com as mãos sobre a cabeça... Uma super reação de comer sorvete rápido demais. Não posso dizer que elas não mereceram.

— Ah, não se preocupe, pode deixa-las aí. Elas vão aprender a lição. Além disso, logo elas voltarão ao normal. Que bom que você e Yami conseguiram ficar fora das loucuras delas.

— Ah... Sim! Mas Yami-san não está aqui.

— Não está?

— Não... Um homem que parecia o pai dela passou aqui para busca-la... Ele não parecia muito satisfeito...

Eu apertei o fio do telefone. Aquele homem... O que ele queria, indo atrás dela, dessa forma? Nada de bom pode sair disso...

— Quanto tempo isso faz, Nana?

— Não muito... Alguns minutos.

— Entendi. Obrigado..!

— Ah, Makoto, da próxima vez, traga a...

Eu instantaneamente bati o telefone, e acabei desligando. Tenho certeza que Nana ficou muito confusa, mas depois eu posso me desculpar com ela. A pressa quase me fez sair sem avisar Shizuka, mas eu voltei a tempo para falar com ela.

— Onee-chan, eu estou saindo. Eu não demoro!

Eu não consegui disfarçar minha afobação, e me apressei para atravessar a porta.

Minha casa fica mais perto da estação do que a dos Nekogami... Se eu correr, eu vou alcança-la primeiro...

Não, se ele estiver usando um carro, é inútil...

Mas por que diabos eu estou correndo até lá? O que eu vou fazer quando chegar? Gritar com ele, por pegar a sua filha? Eu nem mesmo sei... Eu nem mesmo sei o que estou fazendo, mas não consigo parar de correr.

Meus pensamentos ficaram ainda mais confusos quando eu virei a primeira esquina e me deparei com a figura de uma garota de cabelos negros parada, na esquina. Ela parecia estar olhando fixamente o chão. Eu não precisei de muito esforço para reconhecer que ela era Yami. Eu me aproximei dela, lutando para não demonstrar meu cansaço.

— Yami-san? O que está fazendo aqui?

Eu me aproximei até ficar quatro passos de distância dela. Ela levantou o olhar, e me olhou com aqueles olhos vermelhos.

Mas algo de uma cor diferente chamou minha atenção.

Na sua bochecha esquerda, havia uma marca roxa que subia até o canto do seu olho. Era também possível ver que o belo rosto da garota estava inchado, e que aquilo era recente.

Meu coração quase saltou pela boca quando eu vi aquilo. Eu senti como se outra pessoa estivesse tentando arranca-lo de dentro de mim.

— O-O que aconteceu...?

Ela desviou o olhar, claramente não conseguindo me encarar. Eu pensei em insistir, mas... Pressiona-la é realmente a coisa certa a se fazer, numa situação assim?

Não, eu não precisei. Segundos depois, a garota explodiu em choro, soluçando e balançando os ombros em resposta às lágrimas. Eu dei dois passos para frente e segurei seus ombros, trazendo ela para perto de mim.

Meus olhos também encheram de lágrimas. Eu nunca a havia visto desse jeito... Tão frágil, tão... Quebrada.

Ela se afastou de mim um pouco depois, usando as mangas para enxugar as lágrimas.

— Desculpe, Makoto-kun... Eu não queria que me visse assim, mas... Eu não sabia para onde ir.

— Ele te deixou assim, no meio da rua?

Yami olhou para mim, meio que compreendendo que eu entendi o que aconteceu. Ela assentiu com a cabeça, fazendo com que eu torcesse os lábios em repulsa.

— Eu não tive coragem de ver as garotas depois disso, então eu... Decidi que seria melhor procurar por você...

— Entendi... Vamos entrar um pouco, tudo bem? Vou pegar um pouco de gelo.

— Sim...

Ela concordou, abatida. Eu a abracei e a levei até em casa.


. . .


— Aqui, vai doer um pouco.

Eu encostei o gelo, dentro de um saquinho, no machucado dela. Ela apenas fechou um pouco o olho esquerdo, em reflexo, mas não reclamou da dor. Que garota forte.

— Quer me contar o que aconteceu?

Yami passou mais um tempo calada. Ela se ofereceu para segurar o próprio gelo, então eu deixei.

— A verdade é que... Hoje é um certo dia em especial para os Kurou. De acordo com a tradição da família, é como um "dia da colheita". É quando os membros da família mostram os frutos do seu trabalho. Eu sabia disso, e ainda assim fiz outros planos. Isso foi demais para meu pai.

'Sua insolente!'

Eu imaginei o homem bradando em frenesi contra a filha, e acertando seu rosto, fazendo com que ela despencasse no chão. Apenas imaginar a cena fez meu sangue ferver. Me fez querer descontar aquele golpe na mesma moeda.

— Em outras palavras, ele fez isso por eu ser sua filha desobediente. Heh... É quase como se eu tivesse conseguido tudo o que queria... Chamei a atenção dele, não chamei?

Ela deu um sorriso seco para si mesma, e abaixou o gelo por um segundo. Eu guiei sua mão de volta para o lugar, tendo certeza de que ela estava colocando aquilo direito.

Claro, eu não posso simplesmente condena-lo por bater na sua filha. Mas abandona-la sozinha, no meio da rua, no clima frio... Não, muito além disso. A frieza que ele já demonstrava para com ela... Tudo se somou num desejo mal contido de vingança contra ele.

— Eu meio que mereci.

— Não diga isso! Nenhum pai deveria agir assim..! Nenhum pai deveria abandonar seus filhos da maneira que o seu faz! Ele só faz vocês sofrerem... Provavelmente ele enxerga isso, e não faz nada... Não consigo perdoa-lo... Yami, você é incrível. Não se culpe se ele não te reconhece, mas você é magnífica... Você é forte, inteligente e dedicada. Portanto... Não diga uma coisa assim!

O rosto de Yami corou.

Ah, o rosto dela corou...

O meu corou instantaneamente, em relação. Depois de praticamente me declarar para ela, eu me dei conta das minhas palavras.

— Ou... Algo do tipo.

Eu desviei o olhar forçadamente, depois de falar algo para despistar, que acabou sendo sem nexo e idiota.

Eu ouvi o som de um riso coberto, seguido de outros descobertos.

Era o riso da garota, em resposta a minha onda de vergonha.

— Hah... Obrigada, Makoto... Eu precisava disso.

Eu sorri em resposta.

— Não há de quê.

Eu ouvi o som de três batidas comedidas na porta. Eu olhei na direção dela, e me levantei para abrir.

— Quem será...

Eu andei até a porta, me perguntando quem poderia ser.

— Você está esperando alguém?

— Não exatamente...

Eu girei a maçaneta, abrindo-a. Eu me deparei com uma silhueta de uma pessoa mais alta e mais forte do que eu. Sem muito esforço, eu reconheci o rapaz de vestes negras na minha frente. Era Keitarou.

— Ah, Keitarou... O que você... Como você...?

As conclusões para essas perguntas são ' O que você está fazendo aqui ', e, ' como você chegou até aqui ', embora eu nunca tenha feito-as de fato. Keitarou parecia que não havia vindo aqui por coincidência. Ele também parecia um pouco ofegante, como se estivesse caminhando já há algum tempo.

— Makoto... A Yami...

Ele não terminou de falar, assim como eu. Mas isso foi por que ele viu Yami, que havia ficado de pé. Ele olhou direto para o machucado roxo no olho dela, arregalando os olhos. Por um segundo eu pensei que ele imaginaria que fosse eu, mas percebi que não seria o caso... Ele era uma pessoa sensata e razoável, sei que não pensaria dessa forma.

— Yami!

Ele adentrou minha casa, embora eu não o tenha convidado. Não que eu não quisesse, ou que tenha alguma intenção de impedi-lo. Simplesmente fiz o que devia e fechei a porta.

Keitarou foi direto até a irmã, examinando o machucado roxo. A irmã sorriu, tentando acalma-lo.

— Não foi nada. Não se preocupe.

Keitarou continuou examinando o machucado roxo, e então deu dois passos para trás. Parecia que agora ele já estava com o fôlego completamente recuperado, e então se preparou para falar.

— Eu vi que nosso pai saiu para te procurar... Imaginei que algo assim fosse acabar acontecendo. Ele nem mesmo levou você para casa... Não me diga que ele te largou no meio da rua!?

Yami desviou o olhar, servindo apenas para confirmar as suspeitas do irmão.

— Dessa vez ele foi longe demais...

Keitarou apertou o punho direito, juntando sua angústia. Eu pude perceber a frustração que vinha dele, e tive que sentir compaixão. Ter sentimentos tão negativos pelo seu próprio pai não é saudável. Por mais que eles fossem uma família, eu comecei a imaginar se aquela não era a hora de finalmente dar um basta naquilo tudo.

Keitarou, com ferocidade no olhar, parecia partilhar da mesma opinião que eu.

— Me desculpe... A culpa é minha... Mas... Não vai acontecer de novo. Já passou da hora de acertarmos as coisas.

O jovem se virou e começou a caminhar em direção a saída. Yami colocou uma expressão preocupada no rosto.

— Keitarou...

Consequentemente passando por mim, Keitarou me olhou. Eu abri a porta, para que ele saísse. Era como se ele estivesse me agradecendo por cuidar da irmã dele, como ele havia pedido.

Mas algo me faz sentir como se...

Eu não sei, algo apenas me parece errado.

— Keitarou!

— ?

Ele se virou, já do lado de fora.

— Eu vou com você.

— Do que você está falando?

— É que eu... Já me sinto mais do que envolvido nisso. Eu não sei o que eu posso fazer, mas... De alguma forma, eu quero poder ajudar a resolver isso.

O jovem olhou para outro lado, refletindo um pouco.

— De fato, já envolvemos você mais do que deveria. Realmente, você não deveria...

— Por favor.

Eu reforcei ainda mais o meu pedido. Eu estou sério. Keitarou notou isso, e então assentiu com a cabeça.

— Entendi. Então vamos.

Eu fui seguindo ele, e Yami saiu da casa, logo atrás de nós. A primeira coisa que notei quando olhei par ela foi seu machucado. Um gosto amargo tomou conta da minha boca, temendo pela segurança da garota.

— Tem certeza que está bem, Yami-san?

— Sim... Eu tenho que ir também.

Keitarou olhou para irmã com um ar de preocupação. Ele não queria envolve-la no problema, mas sabia que era impossível evitar. Eu olhei na direção do quarto de Shizuka com o mesmo olhar preocupado. Eu consigo protegê-la hoje, mas ninguém sabe por quanto tempo. Afastando essas ideias da cabeça, por hora, eu olhei em direção à estrada.

— Vamos.


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No caminho, eu fui preenchido com um pensamento.

Sim, aquela família não se resumia àqueles dois irmãos e seu pai. Ainda havia a irmã de Yami, aquela com o mesmo rosto que ela. Kurou Raben... Pelo que eu me lembro, ela se aproximou mais do pai dela depois do incidente com a mãe deles. Isso quer dizer que há o risco de ela ficar do lado do pai.

Não acho que isso esteja nos planos de Keitarou... Ele quer manter a família unida, o que significa que inclui as duas irmãs. Em outras palavras, o que ele vai fazer, nesse caso?

E você, Yami? O que você fará? Ela é sua irmã gêmea, e vocês eram tão próximas quando eram menores...

Tenho certeza que você quer que aqueles anos dourados voltem. Então, o que você irá fazer?


. . .


A noite começou a cair, e já havia quase caído por completo quando chegamos na residência.

Uma doce melodia num piano tocava. Era uma melodia calma, lenta, nostálgica. Eu pensei que seria uma crueldade estragar uma bela melodia com a situação na qual estávamos prestes a entrar... Ao mesmo tempo, a melodia parecia simplesmente perfeita pare preceder a ocasião.

Nós atravessamos o jardim decorado, e demos uma volta até a lateral da casa. Nossos passos podiam ser claramente ouvidos à medida que andamos pelo suporte de madeira do lado de fora.

Uma porta lateral estava aberta, e podíamos ver o interior da sala. Deveria ser uma visão costumeira para os irmãos, mas era a primeira vez para mim.

A sala era tipicamente um cômodo de uma mansão japonesa. Podiam-se ver algumas bancadas com troféus, espadas penduradas nas paredes, algumas fotos. No centro da sala, estava um piano. Na cadeira em frente ao piano, havia uma garota. A garota de cabelos negros tocava o piano habilidosamente. Eu já havia ouvido o som daquele piano uma vez, vindo dessa sala. Era Raben que estava tocando daquela vez, também...

Sentado, de olhos fechados, estava um homem. Sua expressão era como se apreciasse e avaliasse a música. Seus olhos se abriram pouco depois de entrarmos na frente do cômodo, mostrando que ele havia ouvido nossos passos. Sua expressão mudou para uma mais séria, quando ele viu o terceiro rosto surgindo - neste caso, o meu.

A melodia parou subitamente. Raben se virou para nós. Seu olhar caiu especificamente sobre Yami, e ela deu um sorriso entretido. Talvez pelo fato de Yami estar com aquele machucado no rosto, sua irmã estava rindo. Aquela cena me deu calafrios.

Um sorriso ao ver o sofrimento alheio... Eu nunca havia presenciado um sentimento tão frio.

— Keitarou... Por acaso você não sabe que dia é hoje?

— Eu sei muito bem... Mas eu tinha que sair para colocar as ideias no lugar. Ou você vai me bater por causa disso também?

O homem de vestes negras encarou seu filho. Seu olhar misturava decepção, raiva e algo como... Cautela.

— Keitarou... Você é um filho prodígio da família Kurou. Não se desvie dessa forma. A tradição da nossa família estabeleceu esse dia como o dia que colhemos o fruto do nosso trabalho.

— Dane-se a tradição da família!

Keitarou deu um passo à frente e bradou aquela frase num tom que me fez estremecer. O pai dele se levantou da almofada na qual estava sentado, encarando o filho nos olhos.

— Você fica tão preocupado com tradições e sucesso... Tão perdido no seu egoísmo e no seu ódio, que você fica cego! Olhe um pouco ao seu redor! Nossa família está destruída!

— Cale-se!

O homem se exaltou. Eu pude notar o sangue subindo até sua cabeça, fazendo seu rosto ficar vermelho. Keitarou, talvez intimidado pela autoridade que seu pai ainda tinha sobre ele, recuou.

— Eu sempre fiz o melhor por essa família! Sempre insisti para que vocês se tornassem as melhores pessoas possíveis! As melhores! Todos vocês eram brilhantes... Mas primeiro você, Yami, e agora você, Keitarou, escolheram desistir!? Eu não permitirei mais isso. Eu tinha esperanças que você tomasse juízo ao longo do tempo, mas essa peste está se espalhando. Eu farei o que tiver que fazer para disciplina-los a partir de agora.

— Por que você apenas não desiste, pai?

A voz que falou logo após as palavras do homem vieram do lado dele. A garota de cabelos e olhos negros levantou da cadeira, olhando para os irmãos com o que poderia ser chamado de desprezo.

— Nós dois sabemos que regar ramos ruins não dará bons frutos... O que nós temos que fazer com eles é simplesmente arranca-los.

A primeira pessoa a reagir foi Yami. Ela desviou o olhar. Eu e Keitarou olhamos para ela, apenas podendo imaginar o que a garota sentia ao ouvir aquelas palavras. Não... Keitarou com certeza tinha uma boa ideia do que era sentir aquilo.

O também homem não aprovou as palavras da filha, dando-lhe uma expressão ríspida.

Raben olhou para o pai, totalmente desentendida do motivo da represália.

— O que foi? É verdade. Se seus filhos não reconhecem o pai magnífico que tem, deveriam simplesmente ir embora.

Eu senti algo agarrando levemente minhas roupas. Yami as segurava pelas pontas dos dedos, embora as apertassem com bastante força. Ela mordeu o lábio, tentando evitar as próprias palavras de saírem da boca enquanto ouvia as da irmã. Não conseguindo aguentar, ela explodiu.

— Chega disso, Raben! Por acaso você não enxerga o quanto você é patética? Se apoiando no nosso pai desse jeito, precisando bajula-lo para sobreviver... Você só usa isso pra se sentir melhor do que os outros! Mas, na verdade, você não passa de uma garota patética...

Yami... Eu realmente entendo que você esteja com raiva, mas isso realmente está caminhando pro lado que você deseja..?

Raben, em face daquilo, olhou a irmã com ódio. Podia-se ver no olhar dela que ela reconhecia algumas daquelas palavras como verdadeiras, e incrivelmente insultantes.

— Não me compare a você, irmãzinha! Eu sou melhor em tudo o que você já sonhou em fazer. Eu sou uma verdadeira Kurou! Uma vencedora! Você pode ter o mesmo rosto que eu, mas nunca foi da família de verdade. Até mesmo a mamãe gostava mais de mim.

Raben virou o rosto numa direção, e meus olhos acompanharam. Ela estava olhando para um pequeno altar, no canto do cômodo. Naquele altar, havia uma foto de uma mulher de cabelos negros e curtos, que pude reconhecer como a mãe das duas.

Eu pensei que, daquela forma, Raben sentia como se a mãe a estivesse observando enquanto ela tocava. Como Yami falou, parecia que ela era muito apegada à mãe.

Keitarou deu um passo à frente, com sua confiança recuperada.

— Você sabe que isso não é verdade, Raben. A nossa mãe nos amava igualmente... E ela nunca deixaria nossa família se separar dessa forma se estivesse viva.

O homem de olhos negros olhou para Keitarou, com seu velho olhar sério, que por muitas vezes já havia me enojado.

— Responda-me, Keitarou... Você acha que eu pedi por isso? Acha que eu pedi para a mãe de vocês morrer? Não... A culpa disso tudo está em outro lugar.

Ele olhou para mim. Mil nomes surgiram na minha mente para mostrar meu desprezo por ele. Ele realmente quer me culpar por isso!?

Keitarou também ficou indignado com aquilo, dando mais um passo para frente.

— Você não pode viver pra sempre culpando os Alkaev pelo que aconteceu com nossa mãe! Será que não pode apenas aceitar? Nenhum de nós queria que acontecesse. Mas o Makoto não tem culpa... Não, ninguém tem culpa. Simplesmente aconteceu.

— Eu não sou tolo, Keitarou. O garoto não é o verdadeiro culpado. Mas há um. E ele carrega o mesmo sangue dele. Portanto, ele carrega a responsabilidade. É ele quem deve arcar com isso.

Não é a primeira vez que eu penso isso, mas eu sinto como se o homem não estivesse olhando para mim, e sim, para outra pessoa. Ele falou que eu tenho os olhos do meu pai... Então, para ele, é como se ele olhasse diretamente para meu pai. Para ele, toda vez que me olhava e me culpava, ele estava colocando a culpa do meu pai.

Isso é imperdoável.

Agora foi minha vez de apertar os punhos.

— Responsabilidade!? Quem é você para me falar disso!? Olhe a sua volta! Seus filhos estão contra você, e ao meu favor! Você deixou sua família morrer, e quer colocar a responsabilidade em cima de mim!? Não sou eu quem está vivendo no passado, me escondendo como um rato!

O sangue quente subiu a minha cabeça. O homem de vestes negras me olhou, cravando em minha testa uma sentença de morte. Ele veio em minha direção. No caminho, agarrou um objeto inconfundível: uma katana, feita de madeira.

Ele a jogou na minha direção, fazendo com que o objeto parasse sob meus pés.

— Pegue, se você for homem.

Sem pensar duas vezes, eu me estiquei na direção da espada. O sangue quente me fez agir impulsivamente, deixando-me tomar completamente pelo desejo de acertar o homem com aquilo. O que me parou, no entanto, foi a mão célere de Keitarou, que agarrou o cabo da espada antes que eu tivesse a chance de toca-la.

Ele me olhou de canto de olho, com uma expressão dura em sua face.

— Me desculpe, Makoto. Essa luta é minha. Além disso, essa não é a sua família, você não deveria se meter nesses assuntos.

Eu abri minha boca para responder, mas pensei duas vezes.

Quero dizer, ele me chamou até aqui, e aquele homem ainda havia me provocado... De primeira vista, eu tinha todos os motivos para questiona-lo.

Mas... O que ele falou é verdade. A família deles está num momento crítico, e eu não sou parte dela. Eu não deveria estar me metendo...

Eu fiquei tão preocupado em ajudar que acabei me metendo demais... Talvez isso também tenha acontecido com os Nekogami, sem eu perceber? Não, nesse caso é diferente... Eu não agi pensando em ajudar, mas apenas pensando em retaliação contra aquele homem. Eu agi de forma egoísta e impensada.

Mas por qual motivo eu estou aqui, então? Se eu não posso ajudar, apenas assistir...

Foi então que eu me dei conta. Eu estou aqui como um símbolo. Eu sou tudo o que é contrário aquele homem, em personalidade, em significado. Isso quer dizer que eu sou como um marco que mostra a posição de seus filhos contra o pai. Eu sou como um estandarte daquela empreitada.

Agora apenas me resta confiar em Keitarou, que subia na madeira do cômodo e tomava posição de combate. Seu pai o encarava com o respeito de quem sabia que enfrentaria um grande adversário, mas ainda tinha aquele tom superior no ar. Ele pegou uma segunda espada e entrou em posição idêntica a do filho, mostrando que os dois haviam recebido o mesmo treinamento.

— Você pensa que pode me vencer, Keitarou? Eu, seu pai? Eu ensinei tudo o que você sabe.

— Não, pai. É justamente por você não ter ensinado tudo que eu estou aqui, hoje. Tivemos que aprender algumas coisas sozinhos, ao longo dos anos. Será que você está preparado para ver?

Meu olhar se desviou dos dois homens e foi parar em Yami. Ela havia levado uma mão ao centro do peito, e agora segurava minha camisa com ainda mais força. Ela estava preocupada. Eu segurei sua mão, tentando acalma-la, embora parecesse ter tido muito pouco efeito.

Em seguida, observei Raben. Ela ainda carregava aquele mesmo sorriso entretido de quem estava se deliciando com aquela situação. Pai e filho estavam prestes a lutar, e, ainda assim, ela estava sorrindo.

Os dois guerreiros giravam num círculo, analisando o oponente.

— Você acha que pode derrotar o nosso pai, Keitarou? Lembre-se, ele é um campeão. Você é apenas alguém que desistiu no meio do caminho.

Keitarou esperou girar até uma posição onde podia ver Raben claramente, sentada na cadeira do piano.

— Raben, eu não sei como podemos resolver isso... Mas, nós não podemos mais viver aqui, nessas condições... Até que nosso pai abra os olhos, você deve vir com a gente.

Raben riu, como se acabasse de ouvir uma piada.

— Eu não estou indo a lugar nenhum, irmão tolo... Afinal, você será derrotado bem aqui.

Keitarou parou e firmou sua posição, ignorando as palavras de desencorajamento. O pai dele fez o mesmo, mudando levemente sua base de combate. Quase que instantaneamente, Keitarou respondeu, mudando a dele também. Eles estavam estudando um ao outro, respondendo um ao outro com defesas e ofensas apropriadas.

E então, a voz feminina ecoou mais uma vez.

— Só é uma pena... Que a mamãe está olhando.

Keitarou desviou o olhar, buscando um ponto acima do seu ombro esquerdo, atrás dele. Ele olhava para o pequeno altar, onde a foto da mulher sorridente parecia o observar.

Como a víbora que é, o homem não perdeu essa oportunidade.

Se aproveitando da distração do filho, ele avançou com a Katana acima da cabeça, desferindo um golpe de cima pra baixo. O espadachim das sombras quase não teve tempo para responder, executando um bloqueio lateral que não absorveu perfeitamente o golpe, e ele deu passos para trás. A fim de ganhar espaço, ele contornou o pai pela lateral, quase não se aguentando em pé devido a onda de golpes que recebeu.

Isso não é bom... Se continuar assim, ele vai perder...

— Eu dei a vocês liberdade demais... A partir de agora, vou executar melhor meu dever de educar vocês, e de punir vocês!

Um golpe atrás do outro, o homem não mostrava piedade. Apenas após vários segundos Keitarou conseguiu se recompor e lançou seu primeiro ataque. A partir dali, eles trocaram golpes, sempre bloqueados pela espada do adversário. Para qualquer um que olhasse, podia-se notar que ambos eram adversários eram igualmente habilidosos. O homem mantinha melhor o equilíbrio, a calma, e tinha ataques mais ferozes. No entanto, Keitarou conseguia uma velocidade maior, se dava melhor nos confrontos de força e com certeza teria uma maior resistência se o combate se prolongasse.

Yami levou a mão até a boca, e lágrimas se formaram em seus olhos. Ela se aproximou de mim, praticamente abraçando meu braço esquerdo.

— Não era pra ser assim... Por que as coisas tinham que terminar assim!?

Raben olhou para irmã, e deu aquele sorriso debochado.

— Não olhe pra ela desse jeito...

Eu disse aquilo mais para dentro do que para fora, embora a garota tenha conseguido ouvir.

Não, o correto é dizer que eu gritei aquela frase tão alto dentro de mim, que, sem eu querer, ela escapou através da minha voz.

— Por que? Ela é uma perdedora, e eu sou uma vencedora... Ela diz que eu não consigo aceitar o passado, mas olhe para mim, irmãzinha! Eu sou melhor em tudo o que você um dia pensou em fazer.

— Então por que... Sou eu quem tem alguém para me confortar enquanto eu choro?

Raben pareceu extremamente atingida pelas palavras de Yami, que deu um passo à frente. Ela agora carregava um olhar muito parecido com o de Keitarou. Determinado, mas cheio de ódio.

Um olhar que eu não gosto.

— O que você pensa que está dizendo?

— Você acha que eu não ouvia? No aniversário da nossa mãe, e em todas as outras datas... Você chorava a noite toda, debaixo das suas cobertas. Como uma criança patética.

Ei, Yami...

— É por isso que você quer ser aceita, não é? Quer ter alguém para cuidar de você... Mas você não tem ninguém, Raben. Você nunca será melhor do que eu. A fracassada é você.

Não, Yami-san... Se você falar dessa forma, vai parecer que você se aproximar de mim, de todos os meus amigos, foi apenas um jeito de ser melhor que sua irmã...

Vai parecer que nosso beijo foi algo falso...

Onde está aquela garota dos olhos vermelhos, aquela garota misteriosa, que me deixa totalmente desnorteado com sua voz, com seu olhar...

Yami-san, eu não quero essa garota do jeito que ela está agora. Se essa for a sua verdadeira você, eu não vou amar te conhecer. Eu não vou poder me apaixonar por você da forma que me apaixonei...

Eu quis acreditar que você queria se dar bem com sua irmã, mas você se deixou tomar pelo ódio...

Não, desde o início, você já estava tomada por ele...

Yami, mesmo que talvez você não me corresponda, eu me apaixonei pela outra você.

É por isso que, apesar de tudo...

Eu ainda acredito que os sorrisos que você deu quando estava conosco, foram sorrisos sinceros.

Portanto...

Por favor, pare...

Eu discursei, apenas mentalmente. Tudo o que eu fiz, tudo aquilo que eu pensei, se resumiu a um pequeno gesto. Eu segurei Yami pela palma da mão, apertando aquela mão. Aquela mão que salvou a minha vida.

Yami-san, se eu pudesse fazer algo por você, como você fez por mim...

Gostaria que pudesse te salvar, apenas segurando a sua mão.

Yami continuaria falando, mas ela fez um silêncio vago. Ela entendeu o que eu quis dizer. Entendeu, que com aquelas palavras, ela estava apenas machucando. Machucando sua irmã, machucando a mim.

Eu tomei um tempo para observar o combate, que ainda estava acirrado. As mãos dos dois combatentes já deviam estar doloridas, assim com seus braços, mas eles continuavam golpeando com mais precisão do que nunca. Parecia que a fadiga havia colocado o homem mais velho sob grande pressão, de forma que quase todos os ataques eram feitos pelo filho.

Nesse ritmo, ele vai vencer.

No entanto, a garota de cabelos negros na minha frente, com o rosto vermelho e olhos de quem estava prestes a chorar, cerrou os punhos, juntou ar nos pulmões e bradou num tom alto que qualquer um na cidade deveria ser capaz de ouvir.

— Por que você não simplesmente morre!?

Eu senti Yami levar uma pontada muito forte com aquelas palavras. Da mesma forma, outra pessoa pausou. Keitarou estava prestes a desferir um golpe que poderia decidir a batalha, mas ele travou. Ele travou em face da realidade que havia sido jogada em cima da cara dele. Despertando, menos de um segundo depois, ele se deparou com uma investida violenta de ataques do homem mais velho. Os pés de Keitarou não conseguiram acompanhar a velocidade, e, a medida que caminhavam para trás, tiraram-lhe o equilíbrio.

Até então eu não havia notado, mas no momento que Yami arregalou os olhos, eu vi.

Eles estavam...

— Mamãe!

Yami gritou, confirmando meu pensamento. Keitarou, nesse momento, se aproximava perigosamente do altar onde a foto de sua mãe estava. Raben também se virou, observando a cena. Eu pude ver seus olhos se enchendo de lágrimas, à medida que ela levantava da cadeira.

Por algum momento, aquela cena passou a ser vivida em câmera lenta. Yami estendia a mão na direção do altar, com um gesto inútil de quem queria que a luta parasse. Raben, em total desespero. Keitarou olhou para o altar por apenas um segundo.

Eu posso apenas imaginar o que se passou na cabeça dele. Talvez ele tenha pensado que a família dele estava prestes a desmoronar de vez. Talvez ele tenha pensado que, naquele momento, era como se o pai dele estivesse matando sua mãe. Como se os anos que ele passou deixando que sua família se separasse fosse como se ele estivesse destruindo a memória dela.

— Você é um filho ingrato! Mesmo depois de todos esses anos, tudo o que batalhei para que vocês se tornassem pessoas de sucesso! É assim que você me retribui!?

Seu pai continuava a falar, a medida que golpeava. Cego, ele mesmo não conseguiu ver a situação em que estava. Ele mesmo não conseguiu enxergar que ele estava quase destruindo a memória da mulher que, se cuja morte foi o bastante para devasta-lo, ele com certeza amava.

'Se ele não pode, eu devo protegê-la.'

Talvez por isso, por esse pensamento, que, naquele momento, Keitarou encontrou forças. Ele conseguiu, de alguma forma, se apoiar, fazendo com que seu pé e seu corpo parassem a milímetros do altar.

— AAAAAAAH!

Bloqueando o golpe do pai, Keitarou usou de toda sua força para girar a espada e impelir seu corpo para frente. O resultado foi que uma das espadas voou metros no ar, caindo do lado de fora, no jardim.

Quando meu olhar retornou para a cena, eu vi um homem ajoelhado no chão. Ele havia dado três passos para trás antes de desabar, derrotado. Raben estava atônita, sem acreditar no que havia acabado de ver. Seu pai, o maior vencedor de todos, derrotado por seu irmão.

Keitarou lentamente deixou a postura de combate e largou a katana no chão, deixando que ela fizesse um baque. Ele arfava, revelando a pressão pela qual seu corpo havia passado. Seu pai olhava o chão fixamente. Sua irmã, ainda incrédula, pronunciava palavras trêmulas.

— Não pode ser... O papai... Perdeu?

Keitarou passou por ele, sem mesmo olhar em seu rosto. Eu vi o que pareciam ser lágrimas disfarçadas escorrerem de seus olhos, mas o espadachim negro apressou em enxuga-las e o molhado delas se confundiu com o molhado de suor do seu rosto. Ele foi até o meu lado e o de Yami, certificando-se de que a irmã estava bem. Em seguida, ele olhou para Raben.

— Eu não espero que você compreenda de cara, Raben... O que você falou é certo. Não podemos mais viver juntos. Passamos tempo demais envenenando uns aos outros... Por isso, venha conosco. Vamos reconstruir nossa família...

— Não!

Raben levou as mãos até as orelhas, cobrindo-as como se fossem protetores. Isso apenas serviu para mostrar o quão danificada estava a garota. O quanto a pressão a fizeram perder o controle, pelo menos naquela situação.

— Eu não quero isso!

Keitarou deixou que o ar escapasse seus pulmões. Era como se ele houvesse desistido. Aceitado o destino que a irmã escolheu.

Em seguida, ele olhou para seu pai. O homem parecia repetir um mantra para si mesmo.

— Eu falhei... Eu falhei...

De início, eu não compreendi muito bem. Então, eu vi as lágrimas. O homem estava chorando. Mas não parecia ser pelo fato de ter sido derrotado... Não, ele não é do tipo de pessoa que choraria apenas por isso.

'Eu falhei, eu falhei.'

Essas palavras se repetiram na minha mente.

Era como se, como pai, o homem reconhecesse sua falha.

Ele não pode achar de verdade que tem sido um bom pai todos esses anos...

Ele não pode achar que realmente esteve fazendo a coisa certa...

Ou será que ele realmente acredita que, da forma que criou seus filhos, ele os estava criando para serem boas pessoas? Criando para que vencessem na vida?

Se for esse o caso, isso o colocaria no patamar de 'pai imperfeito'.

Se for esse o caso, aquelas lágrimas são um pedido de desculpas à única pessoa que estava sorrindo naquele local.

'Eu falhei, destruí nossa família. Eu falhei, não consegui cuidar deles.'

Não me entenda mal, não é como se eu estivesse sentindo compaixão pelo homem... Não que a visão dele caído me traga algo além de um sentimento de satisfação interna.

Mas, mais uma vez, eu pensei se aquilo havia tomado o rumo certo. Se as coisas haviam realmente caminhado para o lado que Keitarou queria...

Nenhum deles queria se separar. Apesar disso, eles nunca estiveram juntos.

Keitarou pegou sua irmã pelo braço, lançando-lhe uma expressão significativa.

— Vamos.

Yami olhou para seu pai e sua irmã, mas foi preenchida pela expressão dura de quem tenta parecer forte. Ela acompanhou o irmão, em direção a saída.

Perdido em pensamentos, eu fui o único que ficou ali, parado. Está mesmo tudo bem em deixá-los desse jeito?

— Vamos, Makoto-kun. Deixe-os aí.

Palavras frias, vindas da garota dos olhos vermelhos. Com um suspiro, me virei e caminhei até o portão. Depois daquele instante, não olhei mais para trás.

Aquele homem havia sido destronado, derrotado por seu próprio filho. Era como se a alcateia tivesse conseguido um novo líder.

A despedida daquela família fora como vieram convivendo, todos esses anos.

Como lobos.


. . .


Nós caminhamos através da noite. Poderíamos ter pego o trem, se quiséssemos, mas acho que simplesmente ninguém estava no clima para se aproximar de tantas pessoas assim. Aproveitamos o frio ameno para caminhar toda a distância até a minha casa. Yami ficou aguardando na esquina, depois que Keitarou me chamou até um pouco mais longe.

— Vai demorar até que as coisas voltem ao que eram no passado... Se é que um dia vão voltar.

— Sim...

Sem mais palavras, eu apenas pude concordar.

— Makoto, a verdade é que preciso pedir um favor.

— Um favor?

— A verdade é que... Tudo foi muito repentino, e eu ainda não tenho um lugar para vivermos. Eu tenho trabalhado num lugar, mas ainda não recebi o primeiro pagamento. Eu tenho um lugar para ficar na casa de alguns conhecidos, mas acho que não vai ser um ambiente muito bom para Yami... Principalmente pelo fato de que, comigo no trabalho, ela vai ficar desemparada... Então, você é a única pessoa... Não, o único amigo que me resta para confiar e pedir isso...

Tudo ainda não tinha se fixado direito na minha mente, mas a ideia dele era clara...

Ele fez uma reverência que me fez dar um passo para trás.

— Por favor, cuide da minha irmã.

— ...Eh?

Meu cérebro demorou dois segundos para processar sobre quem ele estava falando. Kurou Yami. Eu e ela... Morando juntos... Na minha casa...

Um homem, e uma mulher. Sozinhos.

Além disso, depois daquele beijo...

— Eeeeeeeeh!?

Meu rosto corou imediatamente ao pensar aquilo. O rosto sombrio de Keitarou decifrou meus pensamentos indecentes e me encarou com um instinto assassino. Não que estivesse tão difícil assim de ser decifrado...

Respirando para acalmar meus batimentos e não cometer um erro que poderia tirar minha vida, levei alguns segundos para falar.

— Você está falando sério?

Minha pergunta acabou se tornando retórica, visto que ele apenas continuou me encarando.

Ele está realmente falando sério em deixar a irmã dele comigo... Eu não sei se o que ele disse sobre me admirar e me respeitar vai até esse ponto ou se ele realmente não tem bom senso enquanto irmão mais velho...

No entanto, ele disse que eu era seu amigo.

Meu olhar caiu sobre a garota dos olhos vermelhos. Como se ela soubesse do que se tratava, ela me olhou de volta. Meu coração acelerou, instantaneamente. Certamente, não é como se eu não quisesse...

Viver com ela...

— Eu vou... Cuidar dela.

Viver junto com ela...

Keitarou assentiu com a cabeça, como se agradecesse.

É, acho que é algo a se considerar.


. . .


Keitarou foi até a irmã, me deixando na frente da minha porta. Eu pude apenas ver os gestos dos dois, sem ouvir o que estavam falando, mas entendi que Keitarou estava explicando o que havíamos acabado de decidir. Contrário às expressões costumeiras que faziam a garota parecer com uma donzela nobre, o rosto dela corou e ela virou bruscamente na minha direção. Claramente a ideia a deixou tão embaraçada quanto a mim. Keitarou olhou para mim, e depois de volta para a irmã.

Ele proclamou meia dúzia de palavras e fez um gesto com o dedo indicador passando pela garganta.

Ah, cara... Isso não pode ser um bom sinal.

Quando Keitarou trouxe Yami até a porta da minha casa, de alguma forma senti como se fosse o pai trazendo uma noiva até o altar. Eu engoli a seco. Meus pensamentos idiotas me fizeram ficar ainda mais nervoso.

Calmo, ou pelo menos tentando aparentar estar, Keitarou olhou para mim.

— Então, eu deixo ela aos seus cuidados.

— A-Ah! S-Sim!

— E, Yami... Lembre-se...

Ele repetiu a sinalização, agora com uma sombria aura ao redor de seus olhos.

Meu rosto ficou sem ar e acho que minha pele ficou mais roxa do que o limite aceitável...

Você não precisa repetir...

. . .


Sobramos apenas eu e Yami no silêncio da noite. O tempo que levei para girar a chave naquele momento pareceu mais longo do que o de costume. Segundos depois, eu abri a porta, dando espaço para ela entrar.

— Ah, por favor...

— Com licença...

Eu pude notar que ela se esforçava para manter-se cordial mesmo numa situação com aquela. Depois da garota entrar, eu fechei a porta e a tranquei. Com um gesto, indiquei para que ela se sentasse. A primeira coisa que fiz depois disso foi avisar a Shizuka que eu havia chegado. Minha irmã estava dormindo. Serena, calma, despreocupada. Parecia tanto com um anjo que eu nem mesmo ousei acorda-la. Com um sorriso bobo no rosto, eu me afastei e me voltei para a sala.

Yami estava sentada no sofá, encarando um ponto fixo no chão. Eu cocei a cabeça e me aproximei.

— Então... Você quer algo pra beber?

— Ei, Makoto-kun...

— Ah, sim!?

Eu fiquei ereto e respondi exageradamente. Com o passar dos segundos, a tensão nos meus ombros começou a ceder e eu me acalmei.

— Ainda não conversamos sobre aquilo... Sabe... O beijo.

— Ah, sim...

Claro, eu corei. Aquele momento era apenas uma lembrança, algo que parecia surreal. Mas ouvi-la falar dessa forma era a comprovação de que aquilo havia acontecido. Eu olhei para ela, nervoso para saber o que ela queria dizer.

— Sabe... Eu realmente gosto de você. Até mesmo mais do que como amigo.

Foi um bom começo... É um bom sinal, Makoto!

— Mas...

Ah, não... Mas...?

— Nossa situação agora é um pouco complicada... Nós somos jovens, e... Eu não quero que nós dois façamos alguma besteira, morando juntos desse jeito... Por isso eu acho que seria perigoso se, você sabe...

Não, eu não sei direito... Do que ela exatamente está falando?

Ela não pode estar seriamente considerando que, se nós namorássemos, e vivendo juntos desse jeito, nós...

Nós...

— De qualquer forma... Eu acho que devíamos continuar apenas como amigos... Tudo bem?

Aquelas palavras me martelaram no peito. Meu coração parou por um segundo. Independente dos motivos, ainda era uma dor ter que ouvir aquilo.

Apenas amigos, é?

Eu nunca havia realmente estado tão próximo de uma garota para ser rejeitado dessa forma, mas posso dizer que não é a melhor sensação do mundo. Sem saber direito o que dizer, eu apenas fiquei calado por um tempo.

— S-Sim, eu acho... Você está certa. Nós somos muito jovens...

— Que bom que entende.

Yami sorriu, e eu sorri de volta. Um sorriso torto e sem jeito, mas o melhor que eu consegui colocar no rosto.

Eu não sei se me sinto decepcionado ou aliviado...


. . .


Ainda meio desnorteado, eu mostrei a garota o meu quarto. Eu agradeci minha recém-ganha organização - depois de muito ouvir broncas de Nana - e o fato do quarto estar devidamente limpo e arrumado.

— Você pode dormir aqui, por esses tempos.

— No seu quarto? Não, eu não quero incomodar...

— Ah, não se preocupe... Se não quiser, pode ficar aqui só essa noite, e eu arrumo um quarto pra você amanhã...

— Sim, eu prefiro que faça isso. Obrigada.

Eu sorri para a garota, me esforçando para ser um bom anfitrião.

— Bom, se precisar de mim, eu vou estar no quarto da Shizuka. Boa noite, Yami-san.

— Boa noite, Makoto-kun.

Eu dei um pequeno aceno com a mão, e depois me virei.

Que idiota. Quem dá um aceno com a mão dessa forma? Você não vai embora, apenas vai dormir.

Me martirizando mais uma vez, eu peguei um futon num armário que tinha num quarto vazio e o arrumei ao lado da cama de Shizuka.


. . .


Ela continuava ali, dormindo calmamente. Felizmente eu não a acordei enquanto arrumava as coisas. Sorri mais uma vez ao relembrar o quanto seu rosto me lembrava o de um anjo.

— Boa noite, Onee-chan.

Eu sussurrei e repousei meu rosto no travesseiro. Naquela noite, eu tardei à dormir. Eu não conseguia parar de pensar no que aconteceu. Na luta, na discussão, no fato de Yami agora estar vivendo comigo...

A imagem do pai dos três irmãos, ajoelhado, caído, derrotado, continuava me vindo à mente, seguida da expressão sombria de Keitarou ao deixa-lo ali.

Uma relação de ódio, mesmo sendo pai e filho...

Yami certamente estava tentando superar isso, também. Ela parecia bem conversando comigo há pouco, mas sei que ela deve estar sofrendo. Até mesmo não estranharia se encontrasse ela chorando, deitada, nesse momento.

E também, ninguém pode culpa-la. As coisas não deveriam ter acabado assim. Algo desse tipo nem mesmo deveria ter começado.

A forte garota tentava aparentar estar bem, embora estivesse na maior luta de sua vida.

Isso continuou ecoando e se repetindo em meio aos meus pensamentos, à medida que o sono me consumia.

E, juntamente, a frase que acontecera apenas na minha cabeça, parecia marcar muito bem o nome da família Kurou.

Aqueles quatro...

Eles eram exatamente... Como lobos.


. . .

Chiharu - 17


Como lobos.

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