A Rosa Fantasma - Athazagoraphobia II

A chuva de sangue, a encarnação do desespero e o jardim dos mortos...



Isso mesmo pessoal! Hoje temos lançamento duplo de 'A Rosa Fantasma.'
Antes de tudo quero deixar alguns avisos. 
Primeiro: Na página de Downloads do projeto foi postado uma V2 de todos os capítulos anteriores, com uma revisão melhorada. 
Segundo: Por enquanto não teremos a leitura direto no Blog. Daqui para a próxima semana estarei providenciando isso.   Leitura online adicionada!
Terceiro: Para quem já havia lido a primeira parte de 'Athazagoraphobia', basta baixar o arquivo e iniciar a leitura na página 38. É onde começa a segunda parte. 

                                                                                     "Página do projeto"

Enfim, boa leitura! Comentem, critiquem (construtivamente...), e até o próximo lançamento!


Capítulo 2

Athazagoraphobia Pt.2

...Mas o que é o paraíso? Qual o significado da morte? Do outro lado encontrarei um novo mundo, onde todos os meus desejos se tornarão realidade? Ou meu espirito ficará perdido para sempre na escuridão?
Essas perguntas golpeiam minha mente, violentamente e profundamente.
O amanhecer de hoje estava tão quente que acabei despertando por culpa do suor que molhava meu corpo. Basicamente o completo oposto da noite fria de tempestade que estou presenciando nesse momento.
Todos os relógios do mundo devem estar girando bem devagar pois o tempo diante dos meus olhos está correndo bem lentamente. Cada milésimo de segundo parecem minutos. Segundos parecem horas. Estou caminhando pelo ar, fitando a lua cheia que tenta desesperadamente escapar das nuvens que ocultam o céu noturno.
É interessante o fato de que estou sendo banhada pela chuva antes de qualquer outra pessoa lá em baixo. Antes de toda essa cidade que mais parece um gigantesco diamante graças as luzes das lamparinas. Essa sim é uma visão maravilhosa.
Ah... Por um momento acabei esquecendo tudo que acabou de acontecer. Não... Acho que eu escolhi esquecer, afinal não devemos guardar memórias dolorosas, não é? Coisas que sufocam... Coisas que machucam... Coisas que magoam... Devemos manter na nossa mente apenas coisas boas, que aquecem, que trazem felicidade. Como esta noite de chuva. É fria, mas não um frio que me deixe incomodada. Chega a ser um pouco reconfortante pois nunca fui de gostar do calor do sol.
Sempre preferi a noite, eu acho... A maioria das minhas pinturas retratam um cenário parecido com esse. O céu escuro, a cidade imersa nas trevas, famílias passeando na praça durante uma noite de lua cheia. Talvez esse seja o momento mais apropriado para minha última memória. Estou voando durante uma linda noite sem estrelas, girando sobre uma cidade que vai até onde a vista alcança. Me sinto mal por roubar o sonho de tantas outras pessoas.
Hum, o que devo fazer em um momento como esse? Acho que o normal seria implorar pela minha vida, não? Eu deveria gritar com todas as minhas forças ‘eu quero viver’, não é?
Hehe... Isso seria pedir demais.
Acho que rezarei para que a minha morte seja rápida, como adormecer. Também pedirei para que no momento em que eu acordar na outra vida possa encontrar minha mãe e meus irmãos. É sempre divertido estar com eles... Não estar ao lado daqueles que amo seria meio... solitário.
— Acordou, minha flor?
A primeira frase que minha mãe falou para mim no dia de hoje ecoou pelos meus ouvidos.
— É Sofia! Mamãe, pare de me dar apelidos estranhos!
— Você prefere ser chamada de princesa? Ou talvez de boneca?!
— Ah, nossa! Só Sofia por favor!
Mamãe deu um sorriso sincero e tocou meu rosto.
Eu lembro da exata sensação daquele toque. Me senti aquecida, anestesiada. Era algo tão bom, tão reconfortante, que me fez adormecer novamente.
Durante a tarde fui agraciada com alguns momentos que guardarei na memória para sempre. Fui pescar com meus irmãos... Apesar de não conseguirmos fisgar nada, acabamos dividindo vários momentos divertidos. Várias brincadeiras, várias risadas.
Durante a noite conheci duas pessoas interessantes, que talvez eu já possa considerar como amigos. Jantamos e conversamos durante mais de uma hora! Fazia um bom tempo desde a última vez que comi um jantar tão delicioso. Foi um momento inesquecível. Queria ter tido tempo para pintar uma tela retratando aquele momento. Heh... Mesmo com tudo que aconteceu depois, ainda tive um dia feliz.
Eu queria ser capaz de dizer que posso morrer sem arrependimentos, mas... Bianca ficará sozinha neste mundo. Tenho certeza de que ela se sentirá solitária no começo, mas será algo passageiro, eu acho. Logo ela encontrará um novo motivo para continuar seguindo em frente. Eu acredito firmemente nisso...
Se eu tivesse a chance de me despedir iria agradecer por todos os momentos preciosos que passamos juntas, e pelos momentos que nunca teremos. Esse é meu maior arrependimento.
Estou realmente honrada por ter você ao meu lado durante esse curto período de tempo. A partir de agora serei seu anjo particular, irmã.


Com passos rápidos e leves uma pessoa entrou no quarto e passou pelos três mutantes como uma flecha, antes mesmo de ser notada. A garota de pele morena e olhos castanhos cantarolava uma melodia animada à medida que corria em direção a janela. Apesar de pequena, seus movimentos eram confiantes e determinados como os de um tigre.
— Karen...?
Ellen sussurrou.
Karen arregalou os olhos ao notar o estado em que a garota de cabelos brancos estava, mas não parou para oferecer ajuda, não podia parar. No segundo seguinte ela pulou através da janela, sem hesitar, e num piscar de olhos alcançou Sofia, segurando-a pela cintura.
— Uôôôôh!!
Sacou agilmente uma arma (claramente modificada) de dois canos que estava em um coldre na sua cintura e apertou o gatilho. Imediatamente um pequeno gancho ligado a uma corda de aço voou e atravessou a alvenaria no topo do prédio, sustentando o peso das duas garotas, e evitando a queda mortal.
Sofia olhou para baixo, atordoada, e após notar a altura em que estava abraçou Karen com força.
— Não olhe para baixo, criança. Olhe para o céu. Você está voando...
Apesar de transmitir uma aura adulta, Karen era quase do tamanho de Sofia.
— Vamos subir?
Ela apertou o gatilho, fazendo com que sua arma começasse a recolher a corda de aço, puxando-as novamente para cima. Nesse momento Sofia entrou em pânico.
— Não, não, não! Por favor não me leve de volta! Aquele monstro vai me matar!
Karen voltou seu rosto para Sofia e sorriu gentilmente.
— Não deixarei que mais ninguém morra hoje. Enquanto eu estiver aqui, nenhum deles encostará um dedo em você. Eu prometo.
— Você não entende o quão terrível aquele monstro é! Todos estão mortos por causa dele! Todos que eu amava... Minha mãe, meus irmãos... meu pai... TODOS ELES!
Sofia voltou a chorar. Karen sabia que aquele era um momento delicado, mas ela precisava urgentemente ajudar Ellen.
— Às vezes precisamos erguer a cabeça para poder encarar nossos maiores pesadelos de frente, criança. Mesmo que seja traumatizante, mesmo que seja doloroso. Apenas assim conseguimos voltar a sonhar. Apenas dessa forma ficamos mais fortes.
— Como você pode me pedir para encarar aquilo?! Eu quero fugir! Quero ir para o mais longe possível dele!
A feição de Sofia transmitia apenas desespero. Seus olhos escuros enxergavam apenas escuridão e sofrimento por todos os lados.
— Por quê...? Por que você não me deixou morrer...? Dessa forma eu não precisaria continuar sofrendo. Eu poderia me juntar a todos aqueles que amo...
Karen lançou um olhar frio para Sofia.
— A morte não é uma rota de fuga. Você só iria jogar esse sofrimento nas costas das outras pessoas. Seus amigos seriam obrigados a carregar uma dor que deveria ser apenas sua.
Sofia escondeu o rosto no ombro de Karen, chorando silenciosamente.
— Se o seu suicídio for a coisa certa a se fazer, todas as pessoas que herdariam o seu sofrimento também deveriam se matar, não acha? Meu calendário já possui muitos dias de luto... Não quero adicionar seu nome nele.
Karen deu uma risada breve e fez uma careta infantil.
— Não pense que você está sozinha, pequenina. Quando vencermos esta batalha, lhe direi como encarar a dor que você está sentindo. Essa também é uma promessa. Enfim! Acho melhor nos apressarmos. Não sei se consigo segurar você por mais tempo, tehehe...

◊ ◊ ◊

Olhos avermelhados e cabelos castanho claro. Uma garota exibida com ações que abusam da impulsividade e do deboche. O corpo de uma criança com uma alma mais forte e valente do que a de muitos adultos por ai...
Essa é Karen Klann... Uma completa... idiota...
— Não apareça do nada apenas para roubar meu momento de glória, babaca!
Ellen tentou ficar de pé novamente, mas a perda de sangue havia adormecido todos os seus membros, todos os seus sentidos.
— Estou com frio...
Sinto como se minhas roupas estivessem completamente encharcadas por causa da chuva. Mas não está chovendo aqui dentro.
Estou com raiva...
Mas de quem é essa raiva? Você está me observando agora, não está? Não fui capaz de salvar aquelas pessoas, por isso você está com raiva, não é?
— ...Não me odeie... Por favor... Não me abandone...
Ellen ergueu o rosto e sorriu para o grupo de mutantes que agora voltavam a atenção para ela.
— Ah... Isso não vai ser nada agradável...
Com apenas quatro passos Dio ficou de frente para Ellen. Havia uma feição de divertimento em seu rosto desfigurado, como se ele estivesse contente com o estado impotente de Ellen.
Dio atacou. Mas antes que suas garras pudessem tocar a garota de cabelos brancos uma arma disparou três vezes, e o cheiro de pólvora tomou o ar.
GROAH!!
— Afaste-se dela.
Dio cambaleou enquanto gritava de dor por causa dos três tiros que acertaram seu peito.
Parado no local onde antes ficava a porta do quarto estava um homem alto de cabelos castanhos. Assim que seus olhos encontraram Ellen caída sobre aquele rio de sangue, uma feição mortal tomou seu rosto.
Ell... Foram essas coisas que fizeram isso com você...?
O garoto apontou uma pistola cromada na direção de cada um dos três mutantes. Sua mão tremia levemente, mas não por causa de medo, e sim por culpa da fúria incontrolável que queimava em seu interior.
— Adam...
Ellen só notou a chegada daquele garoto no momento em que a voz dele alcançou seus ouvidos. Mas em vez de felicidade, uma explosão de raiva partiu da garota de cabelos brancos.
— ...O QUE DIABOS VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI?! C-começou a me perseguir agora?! Doente! Pervertido! E pare de encurtar meu nome, é nojento!
Adam franziu o cenho enquanto sorria sarcasticamente. Apesar de estar sendo tratado dessa maneira cruel, saber que Ellenia estava consciente fez com que seu coração se acalmasse um pouco.
— Viu irmã... Eu disse que ela ficaria brava...
— MATEM-O!!                          
Dio cuspiu a ordem para os outros dois mutantes. Eles gritaram em resposta e avançaram. Sem pensar duas vezes, Adam começou a atirar na direção das criaturas. Sempre que eram atingidos eles gritavam de dor, mas não ameaçavam recuar. A ordem de Dio era absoluta, e aqueles monstros tinham que cumpri-la, mesmo que isso custasse suas vidas.
— Essas coisas não morrem?!
Adam gritou surpreso. Poucos segundos depois a arma emitiu um clique surdo, informando que a munição havia acabado.
— Ell, aguente firme. Já irei te resgatar.
Ellen deu uma risada fraca.
— Não precisa ter pressa. Eu tenho todo o tempo do mundo...
Um dos meus companheiros de equipe. Pervertido, medroso e chorão. Apesar de alto e forte, não passa de uma criança com coração mole. Ainda assim, por ser uma pessoa gentil, é capaz de pensar no bem estar das outras pessoas antes da sua própria felicidade.
Esse é Adam Klann... Outro idiota irremediável...
Adam guardou a pistola no interior de seu terno e agilmente levou as mãos até a cintura, sacando duas facas curvadas, cujas lâminas prateadas brilhavam graças a luz fraca que atravessava a janela em pedaços.
Adam girou as facas com uma incrível facilidade, enquanto pacientemente esperava que os mutantes tomassem a iniciativa.
A primeira criatura tentou atacar, mas nem ao menos foi capaz de erguer suas garras antes de ser cortado cinco vezes, no estômago e no abdômen. Ataques tão rápidos que ninguém naquele quarto era capaz de enxergar. Em seguida Adam o chutou, fazendo com que o mutante rolasse pelo chão.
O segundo foi cortado três vezes antes que pudesse tomar qualquer iniciativa. Para não ter sua cabeça arrancada do corpo, o monstro foi obrigado a recuar, mas acabou barrado por uma parede.
— Ooaahh!!
Adam cravou uma de suas facas no peito do mutante, prendendo-o na estrutura do prédio.
Foi a vez de Dio atacar, aparecendo pelas costas de Adam. O garoto de cabelos castanhos desviou do ataque surpresa, e as garras de Dio acabaram por acertar o rosto do mutante que estava preso. Aquele foi um golpe tão forte que fez a criatura atingida voar cerca de dois metros antes de bater violentamente contra outra parede.
Dio não desistiu. Ele imediatamente lançou um segundo ataque de uma forma que não dava brechas para Adam escapar.
— Ah, droga...
O garoto de cabelos castanhos sussurrou já preparado para receber o golpe.              
Primeiro um estouro ensurdecedor. Logo após Dio girou pelo ar e bateu contra uma parede, abrindo um buraco na estrutura de tijolos.
— Não monopolize toda a diversão, irmão.
De pé sobre a esquadria da janela estava Karen, sorrindo animada. Com a arma que estava na sua mão direita ela havia disparado usando uma munição que explodiu ao tocar o corpo de Dio. Sofia ao lado da garota morena tremia nervosamente enquanto fitava seu pai.
— NÃO!! NÃO!!
Dio ficou de pé novamente. Boa parte das suas roupas, braço, peito e tórax estavam completamente queimados e desfigurados por causa da explosão. Sangue coagulado escorria pelos seus membros e pingavam como uma cascata sobre o chão. Mesmo nesse estado, Dio não aparentava estar sentindo dor. Na verdade a única coisa óbvia na sua expressão era a fúria por saber que sua filha ainda estava viva.
— ELA É MINHA!!
Dio deu um passo à frente.
— NÃO! POR FAVOR NÃO!
Sofia gritou desesperada em resposta.
— Eu prometi que não deixaria ele te tocar, então não tenha medo. Assim que entrarmos no quarto, preciso que você fique agachada de costas para a janela. Não importa o que aconteça, não se mova. Irei acabar com isso bem rápido.
Karen sussurrou.
As duas saltaram para dentro do quarto e Sofia imediatamente fez o que a morena ordenou.
Cego pelo ódio, Dio avançou sem pensar nas consequências. Ele não enxergava Karen. Na sua frente havia apenas Sofia, e uma insaciável obsessão que corroía o que restava de seu cérebro.
Karen correu de encontro a Dio. Assim que os dois estavam a pouco menos de três passos um do outro, Karen se jogou contra o chão, passando por pelo mutante ao deslizar de joelhos. Rapidamente ela levantou sua arma e apontou para as costas do mutante de um braço, disparando em seguida.
Uma nova explosão iluminou aquele cômodo.
Dio voou, enquanto um buraco nas suas costas cuspia sangue sem parar. Ele passou por cima de Sofia, que permanecia agachada, e atravessou a janela.
— Papai...
Poucos segundos depois Sofia levantou, cambaleante, e foi até a janela. Ao olhar para baixo ela esperava encontrar seu pai caído quatro andares abaixo, mas não havia ninguém lá.
Dio havia desaparecido. Ele ainda estava vivo.
16
23:12 P.M – Centro de Jothenville
Em um mundo corrupto, o que é ‘justiça’?
Para aqueles olhos que só enxergam o ‘mal’, o que é ‘bondade’?
Quando a solidão é seu único ‘amigo’, o que é a ‘felicidade’?
Sem ser capaz de diferenciar o certo do errado, Owen deixou que seu corpo vagasse livremente sobre aquele mar de insanidade.
— Para uma pessoa que abandonou seus próprios sentimentos, o que é o ‘amor’? Em um lugar banhado pela agonia e o desespero, o que é a ‘esperança’?
Gritos de terror ricocheteavam dentro da sua cabeça, atravessando os becos escuros da sua mente. A visão de Owen tremulava e um zumbido agudo ecoava pelos seus ouvidos sem sessar. Não havia dor física, não havia mais sofrimento. Seu corpo estava inteiro, suas vestes não continham nenhum vestígio de sangue.
— Estou morto...?
Ele estava dentro de um ambiente completamente fechado, sem portas ou janelas. Era tudo branco do chão ao teto, como a sala acolchoada de um hospício.
— Novamente... Novamente... Novamente... Novamente...
Owen caiu de joelhos e levou as mãos até a cabeça, em pânico.
Você deseja a chave para escapar desta prisão?
Será que você está pronto para fugir deste mundo de caos? 
Uma voz doce ecoou dentro daquela sala. Owen procurou a origem do som, atordoado, mas não encontrou nada. Não havia nada.
Pessoas inocentes estão morrendo. Você está ciente disso?
Owen arregalou os olhos, perplexo.
— O que isso significa...? Eu fui o único a morrer hoje...
Tem certeza?
Após uma risada desdenhosa todo aquele lugar sem cores mudou drasticamente. Num piscar de olhos Owen notou que estava na recepção da hospedaria, de joelhos ao lado de Ellen, que tentava retardar dois mutantes que haviam aparecido de surpresa.
Owen era apenas um fantasma. Ninguém podia ver seu corpo, ninguém podia ouvir sua voz.
Assim que ele voltou a atenção para as quatro pessoas que formavam um círculo no outro lado da recepção, aconteceu a primeira fatalidade.
 Abadia teve seu pescoço quebrado pela mão do seu próprio marido.

O corpo de Owen congelou. Era como se pedras de gelo estivessem descendo pela sua garganta, congelando o interior de seu corpo à medida que se acumulavam em seu estômago.
Devo prosseguir?
Sem dar tempo para Owen se recuperar do primeiro choque, a cena mudou para o exato momento em que o filho mais novo de Abadia teve seu peito perfurado pelas garras daquele cadáver banhado em sangue.
Não... Não... Não... Não... Não... Não... Não... Não... Não... Não...
Assim que Dio subiu a escada, seguido pelos outros dois mutantes, Owen levantou e cambaleou até o corpo da criança imóvel. Ele tentou fechar os olhos daquele garoto mas não conseguiu, pois seus dedos atravessaram a cabeça dele como o toque de um fantasma.
Você percebeu? O que te espera do outro lado é o luto eterno.
O cenário mudou novamente. Agora Owen estava dentro do apartamento que ele havia alugado para passar a noite. Assim que olhou para a frente, ele presenciou o exato momento em que o filho mais velho de Abadia colidiu violentamente contra uma parede. Ele faleceu sorrindo, e foi aquele sorriso que tirou o ar de Owen.
Você consegue ouvir? O som do medo. O grito do ceifeiro que clama pela morte.
Owen engasgou com sua própria saliva. Um frio insuportável envolvia cada vez mais seu corpo, fazendo suas mãos tremerem compulsivamente. Cada uma daquelas mortes ficavam repetindo na sua mente. Ele estava experimentando em primeira mão um desespero capaz de levar qualquer um à loucura.
Estas são as memórias da sua amiga. Você é capaz de imaginar o quanto ela deve estar sofrendo neste exato momento?
Sem prévio aviso todo aquele cenário mudou mais uma vez.
Owen estava agora em uma campina, coberta por flores e plantas de cores variadas que espalhavam um aroma doce pelo ar. Uma névoa fina dava um tom fantasmagórico e sombrio àquele lugar, enquanto o céu fechado ameaçava desabar a qualquer momento. As nuvens estavam tão perto que Owen tinha a sensação de que conseguiria tocá-las.
Havia uma garota de longos cabelos pretos, usando um simples vestido branco sem mangas. Ela estava sentada em meio à grama. Sua feição leve transmitia uma estranha sensação de tranquilidade, a única coisa que Owen não deveria estar sentindo naquele momento.
Ela fechou os olhos, e após um sorriso entretido, deitou-se em meio à campina.
— Aquele mundo precisa de você, Owen. Não ache que pode escapar dessa responsabilidade apenas parando de respirar.
A garota de vestido branco falou. Sua voz era como o cantar de um pássaro preso em uma gaiola. Lindo, hipnotizante, solitário.
— Eu não entendo...
Owen sussurrou com um tom vazio.
— A pilha de corpos aos seus pés continua aumentando por causa da sua hesitação. O antigo Owen teria salvo essa cidade em apenas uma tarde, mas olhe para você agora. Fraco. Incapaz de salvar uma vida por que tem medo de empunhar sua própria espada.
Owen cerrava os punhos com tanta força que suas unhas feriam sua pele.
Em que momento eu abandonei a confiança que depositava em mim mesmo? Desde quando sou alguém tão frio e perturbado com meu próprio passado ao ponto de ter alucinações com coisas que perdi há muito tempo?
Owen atravessou o jardim, sem dar importância para as flores e plantas que eram pisoteadas no caminho.
— O que você espera que eu faça...? Quer que eu saia correndo por ai, cortando tudo e todos que aparecerem na minha frente?! Isso não é heroísmo, é assassinato! No momento estou tentando ser melhor que isso! Estou tentando ser o que todos esperam de mim!
— Ah... Fico triste em ouvir tantas palavras hipócritas. O que você julga mais importante, Owen? Salvar essas pessoas, ou satisfazer seu ego? É como você disse. Quem deseja ser um herói não pode ser um assassino, mas pense bem... Suas mãos já estão encharcadas com o sangue de centenas de inocentes, inclusive o meu. Isso não torna você pior que muitos assassinos?
Pela primeira vez ela voltou seus olhos sem reflexo para Owen.
— Nenhuma boa ação que você fizer agora apagará os pecados que cometeu no passado. Não há redenção para alguém com lugar marcado no inferno.
Ela estava certa, sempre esteve. Owen continuava lutando por que ainda tinha esperanças de ganhar um lugar no céu.
— Eu vivia para proteger aqueles que precisavam de mim. Mas falhei no meu único objetivo. Agora noto que perdi a única coisa que mantinha meu coração batendo.
Owen deu uma risada sem emoção.
— ‘Por mais que o mundo à minha volta esteja caindo em desespero, eu sempre irei agir como se não fosse o fim do mundo’. Eu havia dito isso para Aria com tanto orgulho, mas agora percebo o quão mentirosas essas palavras eram. ‘Se o mundo cair em desespero, eu serei o primeiro a cair com ele’. Era isso que eu deveria ter falado naquele momento...
No quarto da pensão eu havia perguntado para Ellen o que acontece com aqueles cuja alma nunca para de gritar.
— Eu não tenho uma alma, então não existe uma cura para meu sofrimento. O que grita desesperadamente é minha sanidade, que morre aos poucos sempre que presencio a crueldade deste mundo.
Owen sentou ao lado daquela jovem garota e fitou o horizonte.
— Como uma parte de mim, diga-me: Agora que falhei na única missão da minha vida, o que devo fazer?
— Você quer tanto assim um novo motivo para continuar sofrendo? Se esse é seu desejo eu posso te dar um.
Owen olhou fixamente para o rosto dela, esperando por uma benção, ou simplesmente que aquela garota o perdoasse por todos os pecados que ele cometeu no passado.
— Por ter as mãos manchadas, você é capaz de carregar pecados que nenhum outro consegue. Ser capaz de se sacrificar por uma cidade inteira, torna-o bem mais forte que um mero humano. Da mesma forma que um assassino não pode se tornar um herói, um herói não tem o necessário para se tornar um salvador. Mas também existe a opção de passar toda a eternidade ao meu lado.
A garota respirou fundo. Nesse momento o aroma doce das flores pareceu aumentar ainda mais.
— O paraíso não é um lugar ruim. Aqui não existe dor, sofrimento, guerras. Se você procura a paz eterna, este é o lugar certo.
Owen abaixou a cabeça e deu um sorriso tímido.
— Você não acabou de dizer que eu já tenho um lugar marcado no inferno? Além do mais, tenho certeza que no fundo seu verdadeiro desejo é presenciar minha autodestruição, não é?
A garota deu uma risada doce.
— Hum... Você está certo, então retiro o que eu disse.
Pela primeira vez aquela garota encarou Owen. Sua expressão passou de descontraída para vingativa. Um sorriso macabro tomou seu rosto de uma ponta a outra.
— Eu quero que você sinta o desespero que eu senti, apenas isso. É justo, não acha?
— Não existe nada mais justo.
— Bem, acho que já está na hora de você voltar. Sempre que precisar venha me ver novamente. Como sua amiga, estarei ao seu lado para te guiar pelo caminho correto.
— O caminho que você acha correto, não é mesmo? Ah... Quando me tornei alguém tão patético ao ponto de ser manipulado pela minha própria alucinação?
— Manipulado... Essa palavra combina perfeitamente com você. Deveria adotar como seu apelido.
Com um belo sorriso no rosto, a garota de vestido branco começou a desaparecer lentamente, enquanto deixava para trás apenas uma nuvem de poeira branca flutuando pelo ar.
— A vida é um frasco de veneno, Owen. Siga meu concelho, embebeda-se.
Aquele cenário começou a mudar pela última vez. O céu escureceu, e a chuva voltou a cair.
Owen tossiu rispidamente enquanto cuspia sangue. Ele olhou na direção de seu braço esquerdo, mas não o encontrou. A dor lancinante estava de volta. Ele estava de volta.
Vivo, mais uma vez.
— Então sou o sacrifício necessário para que este planeta ingrato continue girando? Quando eu não for mais necessário, serei sacrificado como um cordeiro?
Owen primeiramente encarou a pessoa de capuz vermelho e em seguida o gigantesco lobo que mastigava seu ombro, restringindo seus movimentos.
— Por mim tudo bem... Farei o meu melhor para ser um ótimo tributo.
A chuva fria que escorria pelo seu rosto eram como lágrimas. Não haviam emoções no seu tom de voz, mas indiscutivelmente suas palavras eram sinceras e verdadeiras.
— Se não ganharei um lugar no céu, por que devo continuar lutando...?
‘Eu posso salvá-lo. Você só precisa fazer uma simples promessa’
O rosto da pequena Ellen, amedrontada e desesperada de dois anos atrás passou pela mente de Owen. Toda aquela fatídica tarde em que eles selaram um pacto foi revivida.
‘Você só precisa viver por mim e para mim.’
Acho que esse é um bom motivo por enquanto. Continuarei vivendo por você. Honrarei a nossa promessa.
Assim que o lobo cravou ainda mais suas presas na carne do garoto de cabelos pretos, algo inesperado aconteceu. O animal selvagem começou a gemer, e poucos segundos depois desabou como uma pedra sobre o chão, enquanto uma densa espuma branca escorria pela sua boca.
Bianca, que estava próxima à Owen começou a recuar, confusa com o que estava acontecendo.
— Aparentemente meu sangue é tão venenoso quanto a picada de uma cobra Coral.
— Como isso é possível...?!
A pessoa de capuz sussurrou, incrédula.
— Eu também queria saber a resposta para essa pergunta. Acredite, já questionei Deus milhares de vezes, mas nunca obtive uma resposta. Por que fui privado do direito de morrer? Por que todos que vivem ao meu redor estão destinados ao desespero? Por que não posso destruir este mundo que insiste em me fazer sofrer? São tantas perguntas...
Owen começou a vomitar sangue em meio a risadas de divertimento.
— ...Acho que eu sou uma anormalidade. Algo que não deveria existir. Sou um animal que não possui predadores, uma fênix incapaz de desaparecer completamente.
Owen sorriu para Bianca, que permanecia paralisada de medo. Ele moveu os lábios silenciosamente, de uma forma que apenas ela pudesse entender.
‘Eu sou a encarnação do desespero’. Essa foi a frase que ele sussurrou.
— Não... Você tem que morrer... VOCÊ TEM QUE MORRER!!
A pessoa de capuz gritou desesperada e ergueu sua mão direita, ordenando que o segundo lobo, aquele que havia arrancado o braço de Owen, avançasse.
Tudo que veio a seguir aconteceu em apenas cinco segundos. No momento em que o lobo saltou Owen apertou o botão de seu Sensorium, transformando-o novamente em uma espada, que em um piscar de olhos cortou o ar.
O sangue do animal selvagem caiu como chuva.
O lobo estava morto.
O que restava da humanidade de Owen também estava.
— Mais cedo eu fiz uma suposição. Eu havia dito para minha companheira que existia alguém próximo a Marcos vazando informações sobre os dias e os horários em que os comboios de alimentos se aproximam de Jothenville, para que eles pudessem ser interceptados. Ellen suspeitava da governanta, mas eu suspeitava de Bianca.
Ele apontou sua espada ensanguentada na direção da garota de cabelos pretos.
— Enfim, depois de tudo que aconteceu agora a pouco, não acredito que Bianca seja a culpada, e a governanta está em prisão domiciliar. Resumindo, estou sem suspeitos.
Um passo de cada vez Owen diminuiu a distância entre ele e a pessoa de capuz. Os fios do seu cabelo começaram a mudar de cor, tornando-se brancos, como se a vida estivesse fugindo de seu corpo. Seus olhos assumiam um dourado ainda mais vivo, deixando sua expressão bem mais aterrorizante.
— Não sou um detetive, então irei pelo caminho mais fácil. Simplesmente arrancarei esta máscara do seu rosto.
O braço decepado de Owen começou a se regenerar. Os ossos cresciam envoltos da carne, veias e pele. Em menos de 30 segundos ele estava movendo seu novo braço livremente.
— Abaixo da sombra que Deus projeta sobre a terra, apenas os ignorantes confiam nas aparências.
Owen sorriu simpaticamente. A pessoa de capuz começou a recuar, em pânico absoluto.
— Como...? Impossível!
Enquanto fitava o rosto sem expressão daquele garoto que estava cada vez mais próximo, memórias de uma semana atrás cortaram a mente da pessoa de capuz.

— Em alguns dias duas pessoas aparecerão. Use isto e esconda seu rosto, pois no momento em que eles descobrirem quem você é, seu fim chegará, e seu sonho nunca se tornará realidade.
— Quem são essas pessoas...?
— Os guardas do paraíso, Owen e Ellenia...

Eu não posso morrer... Não agora que estou tão próxima de encontrar minha mãe...
A pessoa de capuz sussurrou, desesperada.
Owen ficou a dois passos de distância, e com um sorriso infantil tocou o rosto da pessoa de capuz. A máscara de cera primeiramente rachou, e em seguida quebrou em centenas de pedaços.
— Seus olhos também são frios como os de um morto... Será que temos algo mais em comum, Aria Arthmael?
Owen não demonstrou surpresa, muito menos raiva. Sua expressão era como a de uma criança travessa que acabara de acordar, pronto para gastar toda a sua energia.
— Quem é você...?
Essa pergunta veio de Bianca para Owen.
— Eu? O que você quer dizer com isso?
Owen perguntou de volta com um tom gentil.
Memórias do jantar que eles haviam compartilhado tomaram a mente de Bianca. Todas as brincadeiras, todas as risadas.
— Aquele Owen que conheci na pensão era gentil e atencioso com as pessoas à sua volta. Seu sorriso era... diferente. Tudo aquilo não passou de uma mentira?
Bianca abaixou a cabeça e abraçou seu próprio corpo numa tentativa de espantar aquele medo que crescia sem controle dentro de seu peito.
— Tem certeza de que aquela pessoa com quem você jantou era o ‘meu verdadeiro eu’?
A atitude imponente de Owen praticamente forçou Bianca a levantar o olhar.
— Que mundo seus olhos enxergam, Bianca? Tenho certeza de que é um lugar perfeito, onde todos os problemas se resolvem apenas com dialogo e respeito. Todos devem se amar, e por isso são capazes de viver em paz. Não existe miséria, guerras, sofrimentos ou mentiras.
Após uma pequena pausa ele prosseguiu.
— Por acreditar cegamente nas pessoas você não consegue enxergar suas verdadeiras intensões. Por isso você foi facilmente manipulada a me atacar... Tenho certeza de que Aria compartilha da minha opinião. Você pode ser gentil, Bianca. Mas neste mundo gentileza não vale nada.
Owen encarou Aria novamente e perguntou com um sorriso travesso no rosto.
— E você? Que mundo seus olhos enxergam?
Aria começou a recuar, desesperada. A presença de Owen era tão sufocante que de repente ela se viu com dificuldades de respirar.
— Não se aproxime... Saia de perto de mim!
Owen não obedeceu. Assim que ele tocou o rosto de Aria novamente, um grito de terror cortou o céu noturno. Aria sentia como se um ferro em brasa estivesse sendo pressionado contra sua pele.
— UAAAAAaaaahhhh!!!
Sua visão começou a tremular, e em um piscar de olhos tudo havia mudado.
Aria estava em uma rua deserta no meio de uma cidade completamente destruída. Todos os becos e avenidas estavam cheios de escombros. Todos os prédios, casas, monumentos e esculturas encontravam-se em pedaços.
— Esta é Jothenville...?!
 Não havia mais ninguém naquele lugar. Até mesmo os tradicionais pássaros que insistiam em montar seus ninhos sobre as vigas expostas das casas, haviam desaparecido.
Confusa, Aria começou a caminhar sem rumo até se deparar com a única capela que a cidade possuía. Todos os vitrais daquela imensa construção estavam em pedaços. Boa parte do grande domo de vidro no alto daquela edificação havia desabado.
Após dar a volta na igreja, Aria deu de cara com um cemitério.  Milhares de túmulos preenchiam cada pequeno espaço daquele terreno irregular coberto por ervas daninhas. Por visitar aquele local frequentemente, Aria tinha certeza de que não existiam aquela quantidade absurda de túmulos.
— Isso não é real... Todo este lugar não passa de um truque criado para me manipular.
Ela acabou tropeçando em algo escondido pelo matagal e caiu no chão. Assim que a garota loira ergueu o rosto, um frio súbito tomou seu corpo.
Ela havia tropeçado em um cadáver.
Aria tapou a boca com as duas mãos para reter um grito, e começou a se arrastar para longe do corpo em decomposição.
Por não ter mais espaço para novos túmulos, os mortos foram depositados de qualquer forma ao ar livre. Em alguns lugares haviam torres de pessoas empilhadas. Provavelmente a maior parte da população estava jogada naquele lugar.
Dessa vez Aria não conseguiu segurar um grito de pânico. Ela levantou e correu para longe daquele cemitério, desviando dos destroços, das lembranças e do desespero.  
Eu sou a responsável por isso?! Não! Não era para terminar assim! Em nenhum momento eu desejei a morte dessas pessoas! Eu apenas queria vê-la... Mãe!
O som de um chicote se chocando contra o chão ecoou, fazendo com que Aria parasse de correr imediatamente.
— Finalmente chegamos ao clímax, Aria!
Owen usava um terno preto e branco com uma gravata borboleta no pescoço. Na sua cabeça havia um longo chapéu, como aqueles usados por domadores de circo. Ao seu lado estavam dois gigantescos leões, dourados e imponentes, sentados como cachorros adestrados. Owen sorria enquanto acariciava a cabeça de um deles.
Aria notou que Owen e os animais estavam sobre os escombros do que antes fora a grande casa em que ela morava. Aquele lugar que antigamente guardava tantas lembranças, estava agora em pedaços.
— Neste mundo criado por você, só reina o profundo silêncio. Você matou todas as pessoas que aqui residiam e consequentemente matou sua própria alma. Neste mundo criado pelo seu egoísmo, não existe ninguém que pode te salvar do desespero... Afinal, o sangue de todos aqueles que eram capazes de ajudá-la, agora escorrem por entre seus dedos.
Aria inconscientemente olhou para suas mãos. O carmesim sobre sua pele cintilava cruelmente, enquanto respingava sobre seus pés.
— I-Isso é mentira... É apenas um pesadelo! Este mundo é um truque criado por você! NADA DISSO É REAL!
Aria gritou usando todo o ar de seus pulmões.
— Uma vez me disseram que a vida é como um copo de veneno. Dor não traz nada mais que lágrimas. Para cada gota de amor, existe uma um mar de sofrimento. Tanto neste mundo quanto naquele, são suas ações no presente que refletem o seu futuro. Se você faz o mal, receberá o dobro de mal em troca.
Owen levantou sua mão na direção do sol, que brilhava forte no centro do céu.
Este mundo é seu reflexo no espelho. Este é o mundo que você moldou usando suas próprias mãos. Espero que esteja se sentindo orgulhosa.
Owen estalou os dedos. Em resposta uma mão em decomposição emergiu da terra e segurou o tornozelo de Aria.
AAAAAAHHH!!!
Aria escapou do ataque surpresa e voltou a correr, fugindo do olhar curioso de Owen. Ela correu até seus pulmões arderem, e quando suas forças acabaram, entrou em uma pequena casa desgastada pela ação do tempo.
Ela fechou a porta, escorando-a com seu corpo. Tudo era para estar em completo silencio, mas o som de alguém cantando alcançou os ouvidos de Aria. Assim que ela olhou para a frente, seu corpo paralisou.
Em um canto escuro estava uma garota de cabelos dourados. Ela estava desnutrida e seu rosto pálido como o de um fantasma.
— Aquela sou eu...?
Aquela garota com olhos fundos e inchados, encolhida e amedrontada, sem sombra de dúvidas era uma outra versão de Aria.
— Eu sou o reflexo da sua alma.
A garota encolhida no canto daquele cômodo sussurrou enquanto cantarolava.
— Ouça...
Em um piscar de olhos Owen estava ao lado de Aria, fitando a garota semimorta no outro da sala.
—...Não sei o motivo para você ter iniciado tudo isso, e também não irei perguntar. Todas as pessoas são diferentes, pensam de maneiras diferentes e agem conforme aquilo em que acreditam. A única coisa que posso fazer é avisar que não existe um final feliz no futuro que você está escrevendo. Não existem heróis. Não existe uma Bruxa ou uma Branca de Neve. Não existe um Lobo ou uma Chapeuzinho Vermelho. Apenas o vazio reside aqui.
Owen respirou fundo e fitou Aria.
— Este ainda é o futuro que você deseja? Se escolhê-lo, não haverá mais volta. Não existirá mais um lugar para você retornar.
Aria tremia. Ela precisou abrir e fechar a boca cinco vezes para que as palavras pudessem escapar.
— E-eu... não quero terminar assim....
Owen sorriu satisfeito.
— Esta é a resposta certa.
De repente Owen arregalou os olhos, atordoado. No segundo seguinte aquele mundo de fantasia se desfez em pedaços, como uma taça de vidro ao cair no chão.
Owen e Aria estavam novamente na ‘antiga’ Jothenville. A chuva ainda caia e Bianca continuava na mesma posição em que fora deixada. Aparentemente nem um minuto havia se passado naquele mundo.
— Agh! Ah!
Disparos silenciosos acertavam as costas de Owen. Mas em vez de balas de chumbo, a munição usada pelo atirador era composta por dardos tranquilizantes.
— Isso é incrível! Mesmo após ser atingido por tranquilizante suficiente para derrubar um elefante, você continua de pé!  
Owen voltou seus olhos para o homem recém chegado.
— Heh... Então esse é o momento em que as pontas soltas começam a se unir...
Equipado com um rifle de caça estava Marcos Arthmael. Um sorriso entretido tomava seu rosto.

◊ ◊ ◊

Por que o frio que envolve meu corpo continua aumentando?
De quem é toda essa raiva? De quem é toda essa tristeza?
Por quanto tempo conseguirei suportar esse desespero antes que minha mente sucumba à loucura?
Caída, Ellen observava silenciosamente a batalha de Adam e Karen contra os dois mutantes que restavam. Ela havia desistido de tentar se levantar.  Havia algo ainda mais forte que todos aqueles ferimentos prendendo seu corpo ao chão.
Era o peso da culpa.
Naquela tarde você disse que ficaria ao meu lado para sempre, então por que sinto você se afastando pouco a pouco? Essa distância machuca, Owen... Você finalmente jogou fora aquela fachada que usava com tanto carinho?
Uma força sobrenatural crescia dentro de seu peito. Uma força nascida do desespero daquele que portava a outra metade da sua alma. Um poder que se não fosse usado corretamente poderia afundar todo o planeta nas trevas.
Ellen enfim sorriu. Um sorriso cansado, repleto de sentimentos ocultos.
Não posso permitir que você destrua este mundo sem mim. Prometemos que faríamos isso juntos, não é mesmo? Abriremos as cortinas, e revelaremos este palco repleto de falsidades... Um palco onde nós dois seremos os protagonistas.
A garota de cabelos brancos continuou observando a luta de seus companheiros pacientemente enquanto seus ferimentos se curavam gradativamente.
— Aaaaaahh!
Adam acertou o mutante que estava na sua frente com um chute certeiro no queixo. A criatura atravessou a porta destruída do quarto, rolou pelo chão e se chocou contra a parede do corredor.
— Ele está ficando mais rápido...
Adam não teve tempo nem de terminar a frase antes do mutante se levantar em um salto e atacá-lo novamente.
— Poderia pelo menos me dar um tempo para respirar?!
Adam levantou suas facas e foi de encontro à criatura. Quanto mais a batalha durava, mais a força daquele monstro aumentava. Ele já conseguia desviar da maioria dos ataques de Adam, e contra-atacava com ainda mais precisão.
Quanto mais durar essa batalha, mais perigoso será para nós. Adam pensou enquanto lançava suas facas na direção do mutante.
— Uôôôôôh!
Karen desviou das garras da segunda criatura e mirou no peito dele. Assim que a munição tocou o corpo do mutante uma grande explosão fez o prédio estremecer, e uma nuvem de poeira tomou o ar. O monstro voou e caiu no chão com um buraco profundo em seu peito, mas levantou logo em seguida como se nada tivesse acontecido.
— Essa era minha última bala... Certo, vamos para o plano B!
Karen correu em disparada. Ela era tão veloz que seu corpo não passava de um vulto na escuridão. Karen lançou vários socos contra o tórax da criatura seguido por um chute no maxilar, fazendo-o cambalear.
Karen era simplesmente rápida demais para que a criatura conseguisse acertá-la usando as mãos. Notando isso o mutante rapidamente se adaptou a situação. Ele desistiu daqueles golpes lentos e começou a usar suas presas num ataque selvagem.
Por causa daquela mudança brusca de atitude, a garota morena foi forçada a recuar. As presas do mutante passavam bem próximo do pescoço de Karen, que continuava a desviar elegantemente como um toureiro em uma arena. A batalha daqueles dois assumiu o ritmo de uma dança, às vezes com o mutante na ofensiva, outras vezes com Karen.
— Vai ser impossível ganhar usando apenas as mãos!
Após um rugido furioso, a criatura pulou sobre Karen fazendo menção de que iria mordê-la, mas no meio do caminho ele mudou seu padrão de ataque mais uma vez, lançando suas garras em um ataque circular. Karen perdeu a compostura. Sabendo que seria impossível escapar daquele golpe, ela imediatamente usou os braços para proteger seu corpo, e esperou pela dor. Mas antes das garras da criatura tocarem a pele da morena, Ellen saltou sobre o mutante, jogando-o para longe de Karen. Os dois caíram rolando pelo chão.
Ellen segurou o rosto da besta selvagem com um sorriso entusiasmado no rosto. Seu braço direito estava no processo final de regeneração, mas ela nem precisou usá-lo.  Com sua mão esquerda a garota de cabelos brancos pressionou a face do mutante contra o chão. Nos locais onde seus dedos tocavam, veias pretas e pulsantes nasciam. A criatura começou a se debater desesperadamente, com a sensação de que veneno estava sendo injetado diretamente em seu rosto.
Karen já havia presenciado aquele poder antes, mas não deixava de ficar impressionada.
— Você realmente merece o nome de Mandrágora.
Apenas 15 segundos foram necessários para que o mutante parasse de se debater, e mais 5 para que ele parasse de respirar.
— Viu? Com apenas uma mão.
Ellen gargalhou e ficou de pé. Seu tornozelo quebrado, assim como todos os hematomas e ferimentos espalhados pelo seu corpo estavam curados.
— Adam, ele é meu...
Adam suspirou aliviado ao ver que Ellen estava bem.
— Faça bom proveito!
Adam desviou de um ataque e deu uma cotovelada na nuca do mutante, fazendo-o tropeçar para perto da garota de cabelos brancos.
Ellen simplesmente estendeu sua nova mão direita e deu um peteleco na testa da criatura. Esse simples toque lançou o mutante pelo ar em uma velocidade surpreendente, fazendo-o atravessar facilmente uma das paredes. Ele destruiu todos os móveis que haviam pela frente, e parou apenas ao colidir contra a parede do outro cômodo.
Esse era o mesmo golpe que ela havia aplicado mais cedo, só que dessa vez a quantidade de energia utilizada foi absurdamente maior. No local onde Ellen havia acertado o peteleco, encontrava-se um buraco, como se um pequeno raio tivesse atingido exatamente aquele lugar. Aquele único golpe havia provocado danos irreversíveis no cérebro do mutante. Mesmo para algo sobrenatural como ele, perder o cérebro significava a morte.
— Owen... Eu preciso ir atrás dele.
Ellen virou as costas e correu até a saída sem dar importância para seus pés descalços ou para suas vestimentas encharcadas de sangue.
— Vá com ela, irmão! Eu ficarei aqui com a criança!
Karen falou.
Adam acenou com a cabeça e saiu correndo atrás de Ellen. Assim que ele desapareceu de vista, a garota morena deu uma risada curta.
— Ela podia ao menos agradecer pela nossa ajuda... Sua esposa é realmente mal-educada, irmão.
O choro de Sofia era o único som que restava naquele ambiente. A pequena garota pintora estava encolhida ao lado da cama com seu irmão mais velho imóvel há poucos centímetros de distância.
O que está acontecendo aqui...?
Karen pensou enquanto fazia o sinal da cruz. Em seguida ela jogou um cobertor por cima do garoto falecido.
— Em breve você poderá descansar em paz...

◊ ◊ ◊

Alguém me responda. O que é certo? O que é errado?

Em quem devo confiar? Na pessoa que me criou durante toda uma vida? Ou no garoto que me levou para aquele mundo que provavelmente não passava de uma fantasia?

Por qual dessas duas estradas eu devo trilhar? Pelo caminho que realizará o meu sonho? Ou por aquele que pode levar toda essa cidade para a destruição?

Onde minha jornada terminará? No jardim onde todas as flores desabrocham no inverno? Ou no cemitério de concreto onde a solidão absorve toda a luz? Deus, a simples vontade de ter minha mãe ao meu lado torna-me uma pecadora?

Para onde minhas decisões me levarão? Abaixo de mim, o inferno. Acima o paraíso. Na terra em que estou agora, o purgatório.

Aria caiu de joelhos assim que os dedos de Owen deixaram de tocar seu rosto.
— Poderia fazer o favor de se afastar da minha filha?
Disse Marcos com um tom de voz áspero.
— Papai...
Aria sussurro sem forças. Bianca correu e segurou a garota loira antes que ela desabasse de cara chão.
— Aria, o que aconteceu?! Você está bem?!
Bianca perguntou desesperada, mas não obteve uma resposta. Aria ainda estava paralisada por causa das coisas que ela havia presenciado no outro mundo.
— Você realmente está preocupado com sua filha? Toda essa atuação está parecendo bastante forçada aos meus olhos.
Owen começou a retirar os dardos que estavam presos nas suas costas. Ele suava frio e seus sentidos davam indícios de que falhariam a qualquer momento por culpa da grande quantidade de tranquilizante que fora injetado nele.
— Você pode não acreditar Sr. Owen, mas Aria é muito valiosa para mim.
Marcos respondeu enquanto carregava seu rifle com mais dardos.
—Tenho certeza que é. Os poderes sobrenaturais que Aria possui tornam-na uma espécie rara. Você, como um bom cientista, odiaria perdê-la antes de descobrir os mistérios por trás dessas habilidades.
Owen lembrou do desenho entalhado na porta do escritório de Marcos. A assa de um beija-flor. O símbolo dado para os integrantes das forças armadas, ou para aqueles formados na área das ciências.
— Você não está completamente errado, mas Aria continua sendo minha filha acima de tudo. Mesmo se ela perdesse seus poderes nesse exato momento, eu continuaria amando-a da mesma maneira.
Marcos ergueu sua mão direita e estalou os dedos. Em resposta, passos contra o chão de pedra começaram a soar mais alto que as gotas de chuva que caiam. Oito mutantes surgiram da escuridão. Eram todos soldados que foram enviados no final da tarde para o labirinto subterrâneo. Agora Marcos tinha ao seu lado um exército de monstros ensanguentados.
— Então você é o responsável por controlar estes monstros? Foi graças ao sangue de Aria que você os criou?
Ellen havia reportado para Owen tudo que havia de suspeito no laboratório subterrâneo, incluindo o frasco com a frase ‘sangue da progenitora’ escrito nele.
— O que você planeja com tudo isso? Primeiro transformará todas as pessoas dessa cidade em monstros, e depois? A dominação mundial? Uma pandemia global?
Na cabeça de Owen essa era a única teoria plausível. Marcos Arthmael era como um fazendeiro, e toda a população de Jothenville eram seus bovinos, aguardando o momento do abate.
— Você pode enxergar desta maneira, mas eu penso um pouco diferente. Da mesma força que ‘a cura’ pode ser usada para o mal, ela também pode salvar pessoas. Imagine por um momento a quantidade de doenças malignas que poderão ser tratadas com apenas uma aplicação. As pessoas viverão eternamente! Nações inteiras serão salvas!
Marcos falava entusiasmado enquanto fitava suas criações. Owen encarava tudo aquilo com um olhar enojado. Saber que Marcos tinha tirado a vida de tantas pessoas, e a liberdade de várias outras por um motivo tão insano, havia esgotado completamente a paciência dele.
— ...E se eu tiver você ao meu lado... Com essa capacidade de regeneração... Um poder tão... superior. Capaz de anular uma quantidade tão grande de tranquilizantes e modificar sua própria aparência. Com sua ajuda será possível criar uma cura para a morte!
Owen começou a gargalhar, e isso deixou Marcos furioso.
— Vamos ver se eu entendi direito. Você transformou as pessoas desta cidade em ratos de laboratório com o objetivo de salvar o mundo?
Owen ria enquanto zombava do sonho de Marcos.
— Desculpe-me, mas não posso ajudá-lo. Quer saber o motivo? Nós dois somos inimigos naturais.
Owen ergueu sua espada e se preparou para atacar.
— Enquanto você quer salvar o mundo, eu desejo destruí-lo. Enquanto você pensa em salvar vidas... Eu anseio pela morte de tudo que é vivo.
— Não dei opções para escolha, Sr. Owen. Você irá me ajudar por bem, ou por mal.
Sabendo que aquela conversa não levaria a lugar algum, Marcos ordenou que seus subordinados avançassem.
— Não o matem! Aquele poder... Eu preciso dele!
Após uma risada provocativa, Owen partiu para cima das criaturas. Ele era tão veloz que até mesmo as gotas de chuva encontravam dificuldades para acertar seu corpo. Owen saltou e chutou um dos mutantes no rosto. Um golpe poderoso o suficiente para que aquela criatura passasse vários segundos rolando pelo chão. O segundo e o terceiro caíram igualmente rápido após serem pegos por socos certeiros no rosto e no estômago. O quarto tentou mordê-lo, mas antes que conseguisse chegar perto o suficiente, o punho da espada acertou o maxilar da criatura, derrubando-o no chão.
Todos os monstros continuaram a cair um após o outro. Marcos observava tudo com um sorriso extasiado no rosto, enquanto Aria e Bianca mal conseguiam acompanhar os movimentos de Owen.
O oitavo e último mutante lançou as garras de sua mão direita num ataque desesperado. Antes Owen hesitaria em machucar aquele homem, mas dessa vez foi diferente. Em um piscar de olhos ele cortou todos os dedos da mão direita daquela criatura e, em seguida, o rasgou do abdômen até o pescoço com um golpe sem misericórdia.
A chuva carmesim voltou a cair, e no segundo seguinte a criatura desabou, contorcendo-se sobre o chão.
Owen avançou na direção de Marcos Arthmael antes que os mutantes tivessem a chance de se levantar. Se o marionetista fosse derrotado, seus bonecos não conseguiriam mais se mover.
— Venha, Sr. Owen. Vamos ver qual de nós dois possui a determinação mais forte!
Marcos urrou e ergueu seu rifle. Os dardos tranquilizantes acertavam o peito de Owen com a precisão de um franco-atirador. Após 25 disparos, Marcos largou a arma e sacou seu próprio Sensorium, que após ter o botão em seu punho pressionado, transformou-se num híbrido de lança e espada. 
Faíscas surgiram assim que as duas lâminas se chocaram. Apesar de aparentemente estar fora de forma, Marcos conseguia prever todos os ataques de Owen, defendendo-se e contra atacando com técnicas dignas de um grande soldado. Nessa dança imersa em sede de sangue, os dois espadachins lutaram de igual para igual durante algum tempo.
— Você está ficando lento, garoto! Será que os tranquilizantes finalmente começaram a agir?!
As lâminas se chocaram mais seis vezes antes de Owen encontrar uma brecha na defesa de Marcos e lançar a ponta de sua espada na direção do pescoço dele.
— É o fim para você!
Owen urrou.
Creck! Creck!
O barulho de ossos se quebrando cortou o noite. Marcos havia girado seu pescoço de uma forma impossível para qualquer outro ser humano, desviando daquele ataque mortal.
— O quê?!
Owen foi pego de surpresa por aquele movimento, e acabou deixando uma brecha para seu inimigo contra-atacar. A lança/espada de Marcos Arthmael perfurou o estômago de Owen, fazendo-o cair de joelhos enquanto sangue descia como uma cascata, espalhando-se pelo chão.
— Incrível! Incrível! Simplesmente incrível! Eu nunca imaginei que sua espada chegaria tão perto de me machucar!
Marcos moveu sua cabeça, e com um mais um ‘creck’, seus ossos retornaram para seus devidos lugares.
A visão de Owen começou a tremular, e seus membros pesaram como se rochas estivessem amarradas a eles. Notando esse momento de fraqueza, Marcos se aproximou e desarmou Owen, lançando o Sensorium dele para longe.
— Olhe para isso! O sangramento em seu estômago foi estancado em apenas vinte segundos! Que poder maravilhoso!
Owen respirava forçadamente. Ele já não conseguia ver ou ouvir aquilo que acontecia ao seu redor.  Existia apenas o limbo cercando-o.
— Você é a peça que faltava para o meu tabuleiro de xadrez. O mistério escondido em seu sangue mudará o mundo... Tenho certeza que com você, poderei trazer aquela pessoa de volta...
Marcos sussurrou e empurrou Owen, derrubando-o, já inconsciente no chão.
— Aria, levante-se! Não deixe que as palavras deste monstro afetem a sua missão.
Aria tremia de medo, mas assentiu mesmo assim.
Um dos mutantes segurou a perna de Owen e começou a arrastá-lo pela estrada de pedras. Marcos foi na frente, seguido por todos os seus monstros subordinados.
— Você não pode fazer isso! Eu não entendo o que está acontecendo, mas está claro que seu pai planeja fazer algo terrível! Aria, você não pode simplesmente segui-lo, fazendo tudo que ele ordenar!
Bianca implorou enquanto olhava nos olhos de sua amiga, que tentava se levantar, cambaleante.
— Passei a minha vida toda desejando conhecê-la, e agora que esse sonho está tão perto de se realizar, não posso mais voltar atrás...
Aria deu um sorriso tímido.
— ...Eu preciso andar pelo caminho que escolhi até o fim...
— Não faça isso, Aria...
— Agora que você presenciou tudo isso, não posso deixá-la ir embora. Bianca, siga-me, ou terei que tirar sua vida.
Bianca arregalou os olhos, surpresa.
Você teria mesmo coragem de matar a pessoa que esteve ao seu lado durante todos esses anos...?
Após encarar aqueles olhos frios mais uma vez, Bianca encontrou a resposta
Sim... Ela com certeza irá me matar.
— Venha comigo, Bianca. Vamos provar que não existe ninguém capaz de prever o futuro.
Assim que ficou de pé, Aria ofereceu sua mão direita para a garota de cabelos pretos. Sem ter a opção de recusar, Bianca aceitou a ajuda.
Em seguida as duas garotas também desapareceram na escuridão, seguindo pelo mesmo caminho que Marcos e os outros haviam tomado.
Apenas três minutos depois, Ellen e Adam chegaram à frente do armazém.
— Com certeza algo grande aconteceu por aqui...
Adam falou enquanto observava as diversas manchas de sangue espalhadas por todos os lados. Ellen recolheu um dos dardos que estavam pelo chão e o observou de perto.
— Tranquilizantes...
— Ell, encontrei um rastro de sangue. Parece que alguém ferido foi arrastado pelo chão.
Os dois seguiram aquelas marcas até um beco sem saída, onde de repente o rastro acabava.
— Certo, isso é muito esquisito. Para onde eles foram?
Adam falou, confuso.
— Eles desceram para o andar inferior.
Ellen respondeu sem nenhum pingo de dúvidas na voz. Em seguida ela começou a bater o pé no chão, até que em um certo momento encontrou uma grande pedra oca.
— Abre-te, Sésamo...
Com a ajuda de Adam, aquela pedra foi retirada. Escondida na escuridão daquela fissura estava uma escada de madeira que levava para a cidade subterrânea.
— Vamos descer?
Adam perguntou.
— Não. Eu já estive lá em baixo mais cedo. Se descermos acabaremos perdidos... E depois de entrar, não é nada fácil sair.
Adam suspirou.
— Tem certeza? Você não está preocupada com ele?
Ellen deu as costas e começou a caminhar, retornando para a pensão.
— A missão... é mais importante...
Adam apoiou as mãos na cintura e deu uma risada.
— Você nunca é sincera consigo mesma, não é? Saiba que eu também amo essa parte sua.
O corpo de Ellen travou momentaneamente. Ela precisou de dez segundos para se recuperar da surpresa e reaprender a andar.
— Cale-se, idiota! 
 17
00:00 A.M – Túneis Subterrâneos de Jothenville
Após vários minutos caminhando por um labirinto imerso nas trevas, composto por infinitos corredores estreitos e húmidos, um grupo de pessoas adentrou uma sala ampla e mal iluminada.
Haviam cinco mesas de madeira com aproximadamente dois metros de comprimento cada. Nas paredes, armários com portas de vidros estavam cheios de caixas com remédios, seringas, frascos de plástico e vários outros objetos hospitalares.
O mutante depositou o corpo de Owen sobre uma das mesas, e logo após foi ordenado a ficar de vigia em um canto afastado da sala.
— Filha, preciso falar com você a sós.
Marcos sequer olhou na direção das duas garotas que ainda permaneciam paradas na entrada. Ele amarrava os pés e as mãos de Owen usando uma resistente corda trançada. Apesar de sua feição aparentar estar calma, Aria sabia que ele estava irritado.
— Bianca, poderia me esperar na sala ao lado? Prometo que essa conversa será breve.
Aria sorriu para a garota de cabelos pretos.
— Se eu esperar... você me contará o que aconteceu com você...?
A garota de cabelos pretos não compreendia as ações daquela garota que durante tanto tempo foi sua amiga. Bianca poderia tentar escapar nesse meio tempo, mas ela decidiu que continuaria confiando em Aria, acreditando que por detrás daquela máscara fria, ainda encontrava-se a garota doce e gentil da qual ela se lembrava.
— Tudo bem. Eu contarei tudo.
Aria respondeu. Marcos cerrou os dentes e encarou sua filha com um olhar furioso.
Bianca acenou com a cabeça e deixou a sala. Assim que pai e filha ficaram a sós, Aria retirou o capuz e soltou os cabelos.
— Bianca não pode continuar viva... Você consegue imaginar o que acontecerá caso a população de Jothenville descubra o que eu faço aqui em baixo? Eles tentarão me impedir! Todas as minhas pesquisas, todos os meus avanços genéticos, todo o trabalho da minha vida serão jogados no lixo!
Marcos chutou uma das mesas com toda a sua força, fazendo-a girar pelo ar até se chocar contra uma parede. O móvel ficou em pedaços.
— Não ouse jogar tudo que eu mais prezo nessa vida fora por causa de um gesto tão egoísta! Você por acaso se esqueceu que também é seu desejo trazê-la de volta?!
Com uma feição séria no rosto, Aria caminhou até um grande espelho quebrado que estava preso ao lado de um armário e fitou seu reflexo.
— Direto ao ponto como sempre, papai...
Pouco tempo atrás Owen havia tocado o rosto dela, e aquele local ainda queimava. Aria esperava encontrar uma grave queimadura na sua pele, mas surpreendentemente não havia nada.
O que era ‘aquele mundo’? Como ele foi capaz de criar algo tão real com apenas um toque?
Aria só tinha certeza de uma coisa: Owen estava muito longe de ser considerado humano.
— Tem uma coisa que você precisa saber...
Aria caminhou até ficar de frente para seu pai.
— ...Eu finalmente decidi o que quero fazer da minha vida. Papai, você me deu um caminho para seguir. Desde a minha infância eu fui guiada por um caminho que você achava correto.
Aria voltou seus olhos para o garoto que permanecia inconsciente sobre a mesa. 
— Na noite de hoje este garoto me mostrou um mundo completamente diferente daquele que você almeja. O caminho que ele acha certo.
Marcos respirou fundo e sorriu para sua filha. Um sorriso de admiração tomava seu rosto.
— Você está tentando me dizer que escolheu seguir os ideais dele? Filha, você finalmente irá me trair?
— Não. Confesso que no início fiquei confusa. Me perguntei várias vezes: Qual é o caminho certo? Em qual de vocês eu devo acreditar?
Após um breve momento de silêncio, Aria prosseguiu. Sua expressão era triste, depressiva.
— Mas agora a pouco notei o obvio. Não posso seguir o futuro que vocês dois impuseram sobre mim. Eu sou humana, não uma marionete. Irei seguir meu próprio caminho. Mesmo que ele termine em um mundo repleto de solidão. Mesmo que eu termine... em desespero.
Aria colocou seu capuz novamente, deixando que a sombra encobrisse completamente sua expressão.
— Não importa o que aconteça comigo no futuro... Eu juro que não me arrependerei! Afinal, esse terá sido o futuro que eu escolhi para mim! Não ouvirei você, muito menos Owen! Por agora seguirei seus planos apenas por que nossos objetivos coincidem. Mas após isso, você estará sozinho.
Marcos estava perplexo com a atitude determinada de Aria. Ainda assim, um brilho de admiração queimava no fundo de suas pálpebras.
— Você cresceu, filha. Apesar de dizer que não seguirá o caminho que este garoto deseja, suas palavras claramente foram influenciadas por ele...
Marcos vestiu seu jaleco e calçou suas luvas cirúrgicas.
— ...Devo presumir que você não matará Bianca, certo? Agora eu percebo que você preza demais sua relação com ela para ser capaz de fazer isso.
Aria deu as costas para Marcos e começou a caminhar em direção à saída.
— Se você ousar tocar um dedo nela... Te matarei sem pensar duas vezes!
Com um olhar mortal em seu rosto, Aria deixou aquela sala.
— As coisas lentamente fogem do meu controle... Como não há mais tempo restando, terei que apressar meus planos.
Marcos buscou uma vasilha de plástico e a encheu de instrumentos cirúrgicos.
— Olha o que você fez com a minha filha, Sr. Owen...
Ele cortou a camiseta de Owen com uma tesoura e em seguida pegou um pequeno bisturi de dentro da vasilha.
— ...Mas irei perdoá-lo por enquanto. Afinal, o senhor foi bastante generoso ao emprestar seu corpo pelo bem da ciência.
Marcos desceu a lâmina vagarosamente pelo estômago de Owen, com um olhar fascinado no rosto.
— Oh... Isso é incrível! Simplesmente maravilhoso...
Bastaram apenas trinta segundos para aquele corte começar a sarar. Um minuto depois, Owen já estava completamente curado, sem deixar para trás nem ao menos uma cicatriz.
— No seu sangue pode estar escondido o tratamento para o mau mais irremediável do universo. Se eu for capaz de entender o funcionamento das suas células, assim como eu fiz com as de Aria... Tenho certeza de que conseguirei trazê-la de volta... Finalmente terei nas minhas mãos a primeira cura para a morte.
Marcos começou a gargalhar. Mas em meio às risadas, lágrimas desciam sem controle pelo seu rosto. Lágrimas de esperança.
— Após tantos anos... Finalmente poderei ver seu sorriso novamente...
Marcos pegou uma seringa e a injetou no braço de Owen, recolhendo uma grande quantidade daquele sangue capaz de mudar o futuro de todo o planeta.

◊ ◊ ◊

— Mesmo após ouvir minha conversa com Marcos, você continua aqui. Caso não tenha ficado claro, ele pediu para que eu tirasse sua vida.   
Aria falou assim que encontrou Bianca no lado de fora do laboratório.
— Mas você não fará isso.
Bianca respondeu sem hesitar.
— Tem certeza? Mais cedo eu manipulei você para que atirasse em Owen, lembra?
— Posso não saber tudo sobre o seu passado, mas a conheço bem o suficiente para dizer que você não é uma pessoa ilógica. Sei que existe um bom motivo para você estar fazendo tudo isso...
— Parece que você também tomou sua decisão. Muito bem, venha comigo.
Aria deu um sorriso sincero. Bianca hesitou por alguns segundos, mas acabou seguindo-a.
As duas caminharam por mais dez minutos até uma pequena sala mofada. Lá existia uma escada enferrujada em formato de caracol que levava até um alçapão no teto.
— Como prometi, irei revelar tudo que eu mantinha em segredo. Após isso, se você quiser ir embora, não a impedirei.
Bianca assentiu.
Assim que subiu a escada, as gigantescas rosáceas coloridas nas paredes de pedra prenderam a atenção de Bianca. Os vários bancos de madeira maciça e o grande altar adornado revelavam que as duas garotas estavam dentro da igreja de Jothenville.
— Como você já deve ter notado, aqueles túneis subterrâneos estão ligados à diferentes pontos da cidade. Marcos me contou que os descobriu pouco tempo depois de chegar à Jothenville, há 19 anos atrás. Ele passou todos esse tempo transformando aquelas cavernas em uma espécie de cidade subterrânea. Ou melhor dizendo, uma fortaleza.
As duas cruzaram o salão da igreja e entraram no confessionário. Lá dentro havia uma outra escada oculta, que direcionava para um segundo andar que não deveria existir.
— Assim que Marcos se tornou prefeito de Jothenville, ele ordenou a construção desta capela. Aparentemente era para ser apenas uma igreja comum, mas o verdadeiro objetivo desta construção era esconder um tesouro. Algo mais valioso que qualquer pedra preciosa, tanto para ele quanto para mim.
— O que ele escondeu lá em cima, Aria?
— Você verá em breve...
Após subirem para o segundo andar e atravessarem um novo corredor, elas chegaram a uma porta trancada. Aria pegou uma única chave dourada e abriu a porta, revelando uma gigantesca estufa.
— Que lindo...
Bianca sussurrou, impressionada.
Aquela estufa abrigava um imenso labirinto de flores que espalhavam centenas de aromas diferentes pelo ar. O domo da igreja era feito de vidro translúcido, permitindo a passagem de luz durante o dia, e a claridade da lua durante a noite.
— Como você sabe, minha infância foi muito... vazia. Meu pai desaparecia por semanas, por isso eu raramente o via. Este jardim nasceu por causa disso. Como uma forma de fugir da minha casa solitária, eu vinha para esta capela e trabalhava neste jardim. Cada uma destas flores foram plantadas pelas minhas mãos.
Bianca estava sem palavras. Aquela estufa parecia ter vindo de um livro infantil. Era mágico, misterioso e sombrio ao mesmo tempo.
— No início eu não sabia como denominar este lugar, mas com o passar dos anos comecei a chamá-lo de Jardim Dos Mortos em homenagem a pessoa que sempre me fazia companhia durante os dias que eu passava aqui.
— Então todas aquelas vezes que eu não te encontrava em casa, era por que você está neste lugar...
Aria acenou afirmativamente.
— Passei muitos anos da minha vida neste pequeno mundo solitário. Eu raramente interagia com outras pessoas...
As duas caminhavam pelo labirinto de flores. Aria respirava forçadamente, como se tentasse segurar as lágrimas. Um profunda angústia tomava seu tom de voz.
— ...Até que em um certo dia eu conheci você.  Minha primeira amiga. A pessoa que eu invejei ao ponto de odiar às vezes... Mesmo sendo abandonada ao nascer você foi adotada por uma ótima família, crescendo em um ambiente preenchido com amor e felicidade... Eu nunca tive nada parecido com isso. Enquanto você tinha uma vida de verdade, eu apenas existia.
— Isso não é verdade! Eu sempre soube que você se sentia solitária, por isso fiz o possível para nos tornarmos amigas! Nós brincamos, rimos, construímos diversas memórias felizes... Você é uma parte importante da minha família!
Aria abaixou o rosto e sorriu para si mesma.
— Você é a única família que eu já tive, Bianca.
Pouco segundos depois um grande altar feito de granito branco tomou forma por entre as flores. A luz da lua, que atravessava o grande domo de vidro, caia exatamente sobre um caixão de marfim aberto.
O corpo de Bianca congelou de perplexidade.
— Por que isto está aqui...?
Dentro do caixão encontrava-se uma mulher trajando um longo vestido branco, como o de uma princesa. Seus cabelos eram pretos e lisos.  Suas duas mãos repousavam uma sobre a outra.
Era como se ela estivesse rezando.
— Ela é a sua cara, não acha?
Aria sussurrou ao notar a confusão da garota ao seu lado.
A mulher deitada no caixão era idêntica à Bianca.
Quem é esta mulher...?
Bianca perguntou com uma pontada de pânico na sua voz. Aria olhou para cima, perdida em pensamentos.
— O nome desta mulher era Sarah Amarante Arthmael. A pessoa que chamei de mãe durante toda a minha vida. Mas uma semana atrás descobri que isso era uma mentira. Eu pensava que minha mãe tinha falecido durante o meu nascimento, mas meu pai havia mentido sobre isso.
Havia algo no corpo da mulher falecida que prendia a atenção de Bianca. Por baixo do fino vestido que ela usava, Bianca podia enxergar linhas de costura cobrindo todo o corpo do cadáver.
A mulher dentro do caixão estava completamente costurada, como se fosse uma boneca de pano.
— Esta mulher não é minha mãe verdadeira.
Aria fitou Bianca com uma feição séria no rosto.
Ela é sua mãe. Aquela que supostamente te abandonou assim que você nasceu. Está curiosa para saber como ela chegou aqui?

◊ ◊ ◊

A vida dos homens é como uma erva: brota como a flor do campo, mal sopra o vento e ela desaparece. Depois ninguém volta a saber dela...
A tempestade finalmente havia passado, mas o clima frio e pesado ainda predominava naquela cidade.
...Porém o amor do Senhor é infinito para os que o honram, e a sua justiça revela-se de geração em geração...
Haviam quase duas centenas de pessoas reunidas em um pequeno terreno irregular, cheio de criptas e túmulos, atrás da igreja de Jothenville. Cada um dos homens, mulheres e crianças ali reunidos, seguravam uma única vela acesa, em sinal de luto.
— ...Deles é o Reino de Deus. Cordeiro que está no trono será o seu pastor, e há de conduzi-los às fontes das águas vivas...
À frente da população estava o padre, orando para que aquelas cinco pessoas que perderam suas vidas fossem bem recebidas no céu. Durante cada oração todas aquelas pessoas cantavam em coro.
...E Deus enxugará para sempre as lágrimas dos seu olhos...
À frente do padre estavam cinco caixões enfileirados sobre a grama seca. Abadia, dois de seus filhos e os mutantes que Ellen havia matado residiam dentro deles.
— ...Gloria ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo; como era no princípio, é agora e será sempre. Amém.
Assim que os caixões começaram a ser depositados em seus túmulos, um profundo silêncio tomou o cemitério. Era dessa forma que a população de Jothenville demonstrava respeito para aqueles que nunca mais poderiam ver o sol nascer novamente.
Observando o funeral de longe estavam Adam e Karen.
— Bom trabalho, irmã. Não deve ter sido fácil organizar tudo isso em tão pouco tempo.
Adam falou para a garota ao seu lado.
— Não foi tão complicado. A única coisa que precisei fazer foi conversar com o padre.
Karen suspirou e olhou para o céu. Pela primeira vez naquela noite ela conseguiu enxergar as estrelas.
— Eu não podia deixar os corpos deles jogados daquela maneira. Conseguir um enterro de verdade era a única coisa que eu podia fazer por eles, e por aquela garotinha...
— A criança não quis vir ao enterro?
— Não... Fiz de tudo para convencê-la a despedir-se, mas ela ainda está em estado de choque...
Ellen não estava no enterro por que acabou encarregada de protegê-la caso Dio aparecesse novamente.
— Acho que já passou da hora de Ellenia nos explicar o que está acontecendo neste lugar.
Karen esticou os braços numa tentativa de se livrar da fadiga. Sua boca era apenas uma linha fina, seu rosto inexpressivo.
— Heh... As coisas parecem estar totalmente fora de controle... Será que Owen está bem?
— Nós precisamos conversar sobre isso também! Não sei se você notou, mas com Owen longe com certeza surgirão várias ‘chances’.
Um sorriso malicioso tomou o rosto de Karen.
— ‘Chances’? O que você quer dizer com isso?
— Ora irmão idiota. Chances para você se aproximar da Ellenia, não é obvio?! Então, boa sorte!
O coração de Adam começou a bater forte em seu peito, como se estivesse tentando fugir do seu corpo.
— Você é tão cruel, irmã... Mas ainda assim, prometo que vou me esforçar!
Com o rosto vermelho como um tomate, Adam estranhamente bateu continências enquanto sorria. 
18

05:35 A.M – Pensão de Abadia
— Responda minha pergunta com sinceridade. Quais as nossas chances reais de vencer?
A escuridão ainda prevalecia no lado de fora. Ellen observava a cidade pela janela de um quarto no segundo andar da pensão. Sua expressão era de cansaço. Ela não havia conseguido dormir pois seu coração não se acalmava dada a possibilidade de um novo ataque surpresa.
O desaparecimento de Owen era outro fato que tirava seu sono.
Diversas vezes durante a noite cortes misteriosos apareceram pelo corpo de Ellen, comprovando que seu parceiro estava sendo torturado.
— Sinceramente? Bom... Eu acho que a ideia de escoltar o comboio de alimentos tem tudo para dar errado. Você disse que nenhuma pessoa foi atacada pelos lobos durante os últimos envios de alimentos, mas após os acontecimentos dessa noite, não podemos contar com essa sorte. Eu não me importo em seguir você, mas somos apenas três pessoas contra um exército de monstros. Esse é um plano suicida.
Adam falou num tom baixo para não acordar sua irmã, que dormia com a cabeça em seu colo.
Poucos minutos atrás um mensageiro enviado por Marcos Arthmael apareceu para avisar que o comboio de alimentos estaria chegando na entrada da Floresta de Caaporã por volta das 8 horas da manhã. A escolta deveria alcançar o comboio antes dele adentrar a floresta.
— Estou ciente disso... Mas que outra opção temos?
Alguns segundos de silêncio.
— Acho que você está certa quanto a especulação de que os lobos e os monstros estão sendo controlados por alguém. Se Owen lutou contra o ‘controlador’, sua dedução de que é preciso estar próximo dos subordinados para enviar as ‘ordens’, também se confirma.
Ellen arregalou os olhos, notando o plano oculto de Adam.
— Basicamente o ‘controlador’ obrigatoriamente deverá estar por perto para ser capaz de controlar seus servos... Se o comboio for atacado, só precisamos encontrá-lo e derrotá-lo para dispersar os lobos!
— Bingo.
— Quem diria! Às vezes você pode ser útil!
Em vez de se sentir ofendido, Adam sorriu como uma criança que acabara de ganhar um doce.
— Não é! Eu mereço uma recompensa, não acha?!
Ellen fez uma careta, já imaginando o que viria a seguir.
— Que tipo de recompensa...?
— Ora, não é obvio?! Um beijo! Não, quero vários beijos! Não, isso ainda é pouco! Quero que você se case comigo!
Ellen recuou surpresa com o pedido de casamento repentino.
— Isso nunca vai acontecer, idiota pervertido!
Em um piscar de olhos Ellen pegou um cinzeiro que estava sobre o criado mudo e o arremessou como um foguete na direção de Adam. O objeto acertou a testa dele em cheio, e como era feito de gesso, quebrou-se em dezenas de pedaços.
— GWAAAAA!!!
Apesar de Adam ter gritado de dor por quase dois minutos, Karen continuou dormindo tranquilamente no colo dele.
— Para falar a verdade eu me sentiria mais confiante se tivéssemos o resto da equipe com a gente.
Ellen sussurrou honestamente.
— Então você precisa de um exército? Se for isso, eu posso conseguir um para você.
Adam falou com um sorriso confiante enquanto alisava sua testa para ter certeza de que não havia ganhado um galo.
— E como exatamente você pretende reunir um exército?
— Deixe isso comigo!  
Cuidadosamente Adam ergueu sua irmã e a deitou sobre a cama do quarto.
— Ell, após vencermos essa batalha com certeza traremos Owen de volta!
Ele piscou e correu para fora do quarto, determinado a realizar o desejo de Ellen.  
— ...Às vezes você pode ser bem confiável também...
— Hummmm... Ele teria infartado se escutasse um segundo elogio no mesmo dia. Por que não admite logo que gosta dele?
O coração de Ellen saltou em resposta.
— Isso é outra coisa que nunca vai acontecer!
Karen riu sarcasticamente enquanto fitava o rosto corado de Ellen.
— Onde está a garotinha?
Ela vasculhou o quarto com seu olhar, mas não encontrou a criança ruiva.
— Ela não queria que a víssemos chorando, então foi lá para cima.
Ellen podia enxergar vividamente todas as fatalidades que aconteceram naquela noite. O rosto pós morte das três pessoas que ela não foi capaz de proteger ainda feriam cruelmente seu coração.
Karen sentou sobre a cama e se espreguiçou.
— Ellenia, meu irmão está certo sobre possibilidade da missão de hoje falhar... Ele apenas errou quanto ao motivo. Não é o fato de sermos apenas três pessoas que me deixa incomodada, mas sim o fato da nossa arma secreta não estar preparada para a batalha que se aproxima.
— O que você quer dizer com isso.
— Estou dizendo que se durante a batalha você continuar preocupada com Owen, nossas chances de vencer cairão drasticamente. Aquilo que mais precisamos no momento é da Mandrágora completamente focada no trabalho.
Karen deu um sorriso sincero.
— Você está certa. Estou com medo de que essas pessoas continuem morrendo na minha frente... Estou com medo de não ser forte o suficiente para proteger essa cidade...
— Idioooota. Você é um soldado, não é? Então aja como um! Pare de procurar desculpas para não fazer seu trabalho.
Karen saltou da cama e caminhou até uma de suas malas. De lá ela retirou um par de botas pretas e as lançou para Ellen.
— Você não pode entrar em uma guerra descalça.
Enquanto ria, Ellen pegou o Sensorium de Owen e o guardou na bainha presa acima de seu joelho. Em seguida calçou as botas de Karen.
— Irei proteger aquele comboio e salvarei esta cidade!
A garota de cabelos brancos falou confiante. Ela vestiu o sobretudo de Owen, usando-o para cobrir seu vestido sujo de sangue seco.
— Você me seguirá em mais essa batalha, Karen Klann?!
— Seguir? Não! Lutarei ao seu lado, de igual para igual.
Após sorrisos entusiasmados, as duas deram um aperto de mãos.
— Irei lá fora ver o que Adam está aprontando. Você poderia ficar de olho naquela criança por um tempo? Estou preocupada com ela.
— Oh! Quem diria, você consegue ser honesta às vezes!
Karen sorriu de forma desdenhosa, tirando sarro da cara de Ellen.
— Cale a boca, pequena vadia. Cuide bem da criança...
Ellen acenou com a cabeça e saiu do quarto, deixando Karen sozinha.
— A noite finalmente está acabando...
O que uma ‘pessoa normal’ faria para ajudar alguém que acabou de perder sua família? Sequer existe um modo de ajudar?
Karen se perguntava enquanto subia os andares da pensão.
O que uma ‘pessoa normal’ diria para alguém que perdeu seu único lar? Será que existe alguma palavra que seja capaz de diminuir o sofrimento dela?
Ah... Eu realmente não sou boa com esse tipo de situação...
Logo após chegar a cobertura do prédio, ela encontrou Sofia. A pequena garota ruiva estava de frente para uma grande tela apoiada por um cavalete. Com sua mão esquerda ela segurava uma palheta de cores, e na direita um pincel. Sua postura poderia ser comparada a de um profissional, mas o modo como a tinta era jogada sobre a tela demonstrava uma agoniante falta de controle. O pincel deslizava sobre o quadro de forma rápida e violenta. Sua mão empregava tanta força que a tela aparentava estar perto de rasgar.
— Incrível...
Karen sussurrou, impressionada.
O desenho que se formava deveria representar a cidade durante o nascer do sol, mas o tom vermelho escarlate utilizado não fazia menção ao nascimento, e sim a morte. As formas irregulares das construções refletiam as emoções distorcidas de Sofia.
— Esta confusão de cores e sombras... É desesperador, mas ao mesmo tempo hipnotizante...
Karen observou Sofia em silêncio por alguns minutos antes de se aproximar. Ela não sabia como lidar com aquela situação. Qualquer palavra generosa que ela falasse nesse momento soaria como uma mentira, afinal, Karen não era capaz de entender o sofrimento daquela criança.  
— Essa é uma pintura magnífica. Você é realmente muito talentosa...
Assim que notou a presença de Karen, Sofia rapidamente tentou secar suas lágrimas usando a manga do vestido, mas acabou sujando seu rosto com tinta vermelha. Karen riu.
— ...E bastante desastrada também.
Sofia fez uma careta e voltou a pintar.
— Deixe-me sozinha, por favor...
Karen suspirou profundamente e foi até a beirada do prédio. Os primeiros raios de sol finalmente emergiram acima das muralhas, fazendo com que a grande cidade de Jothenville brilhasse.
Karen não era uma garota sensível, muito menos entendia a dor de perder um membro da sua família. Porém, ela desejava do fundo de seu coração ajudar aquela criança que sofria.
Mas o que a pequena morena podia oferecer quando tudo que ela carregava era um longo rastro de destruição e uma insaciável sede de sangue?
Eu não sei como uma pessoa ‘normal’ agiria neste momento...
Karen sorriu inocentemente.
...Mas desde quando eu sou considerada uma pessoa ‘normal’?
— Criança, o que você pretende fazer agora?
Sofia fez uma expressão de confusão. Seus olhos estavam inchados de tanto chorar. Seus dedos tremiam, e consequentemente o pincel na sua mão. Seu corpo estava completamente dolorido por ter passado a noite toda encolhida no canto do quarto.
— Você quer vingança, não é?
Sofia arregalou os olhos em resposta.
— Se você deseja matar aquele que um dia foi seu pai, não a julgarei. Se você acha que ao fazer isso sua dor diminuirá, então a ajudarei com isso. Se suas mãos desejam sangue, então deixe-me ser aquela que realizará esse desejo. Permita-me ser sua guia enquanto você caminha por essa estrada sem volta.
Um olhar frio tomou o rosto de Sofia. Uma expressão que abandonava qualquer traço da inocência que ela um dia possuiu.
— Eu quero... matá-lo...

◊ ◊ ◊

Logo após deixar a pensão, Ellen notou a estranha movimentação de pessoas que caminhavam apressadas para a praça central da cidade.
— Todos vocês não deviam estar dormindo? Por que eu sinto que aquele idiota é o responsável por essa bagunça toda?
Após suspirar profundamente ela seguiu a multidão.  
Quase toda a população de Jothenville estava reunida no mesmo local. Ellen precisou forçar passagem por entre o círculo de pessoas para chegar até o responsável por todo aquele tumulto. Lá encontrou Adam. Ele havia acabado de colocar uma caixa de madeira sobre o chão com a intenção de usá-la como palanque.
— Certo! Os espectadores estão presentes e o palco está pronto. Está na hora de começar o grande show!
— Ei, o que você está tramando?
Ellen perguntou assim que ficou de frente para Adam.
Após passar vários segundo fitando a garota (Mais precisamente as roupas que ela vestia), Adam respondeu com um sorriso.
— Nada de mais. Apenas sai batendo de porta em porta avisando que haveria um pronunciamento importante.
Ellen franziu o cenho.
— É impossível reunir tantas pessoas utilizando um recado tão suspeito!
— Ah! Também avisei que haveria café da manhã gratuito! Minha mãe sempre fala que para pescar uma pessoa usa-se como isca pão de queijo, bacon e café com leite.
— Heh... Quando essas pessoas descobrirem que não existe um café da manhã, você é quem se tornará o pedaço de bacon.
Sussurros desconfiados ecoavam por todos os lados. A maioria deles julgavam o Legior antes mesmo de saber o que ele tinha a falar. Esse era o tamanho da confiança que aquela cidade depositava na Legião de Mahyra.
— Peço o silêncio de todos para que eu possa dar início ao pronunciamento!
Com um tom de voz imponente, Adam calou facilmente todas aquelas pessoas. Sem saber o que estava para acontecer, Ellen ficou em silêncio ao lado do seu companheiro de equipe.
— Daqui a algumas horas um comboio carregado de alimentos estará se aproximando da cidade. Eu reuni todos vocês com a intenção de formar uma força armada de voluntários para proteger esse comboio. Resumindo, estou precisando de um exército! Peço para que todos aqueles que estejam interessados em se unir levantem a mão!
Um tumulto generalizado tomou conta daquela praça. Algumas pessoas gritavam coisas como: ‘é impossível’, ‘já tentamos fazer o mesmo dezenas de outras vezes e sempre falhamos’.
Ellen fitou o garoto de cabelos castanhos ao seu lado e sussurrou de forma sarcástica.
— Eles são como jumentos, Adam. Se deseja convencê-los, você precisará ser bem mais convincente.
Após um sorriso, Adam urrou.  
— SILÊNCIO SEUS COVARDES!! Vocês pensam que estão seguros atrás destas muralhas, mas estão enganados! A morte está tão perto que é possível senti-la assoprando nas nossas orelhas! Estou me perguntando quanto tempo resta para que o desespero abrace cada um de vocês. Será que vocês finalmente lutarão para fugir desta prisão?! Ou quem sabe vocês despertarão seus instintos mais primitivos?! Já consigo imaginar todos se devorando como canibais!
As palavras de Adam trouxeram consigo a fúria daquele povo. Enquanto xingavam e protestavam, aquelas pessoas começaram a avançar lentamente.
— Aaaah, olha o que você fez! É esse o momento em que nos tornamos bacon aos olhos deles!
Ellen suava frio sem encontrar uma rota de fuga. Ela estava se sentindo como um cervo cercado por centenas de leões.
— Não sei se notaram, mas existem apenas dois futuros possíveis para vocês! Primeiro: Se continuarem brincando de casinha dentro destas muralhas, garanto que em menos de sete dias vocês estarão se matando por causa da escassez de alimentos.
Adam ergueu o braço direito e fez sinal de dois com os dedos.
— Segundo: Abram aqueles portões e corram! Ergam suas armas e lutem por suas vidas, pelas suas famílias e pelo futuro desta cidade! Derrotem todos que estiverem pela frente e resgatem a liberdade que roubaram de vocês! Por qual desses futuros vale a pena morrer?! Escolham!
O tumulto se intensificou ainda mais. Adam e Ellen estavam no meio de uma grande bomba relógio prestes a explodir.
— Isso não está funcionando, Adam... Acho que se você pressioná-los ainda mais, iniciaremos uma guerra civil...
Ellen sussurrou. Adam mordeu o lábio inferior, notando que suas palavras não alcançaram o coração daquelas pessoas de uma forma boa.
— Suas falas são típicas de um ditador, sabia?!
Quando tudo estava prestes a desmoronar, uma voz masculina se sobrepôs à de toda aquela multidão, calando-os.
Uma feição sombria tomou o rosto de Adam.
— Qual o seu nome?
— Guilherme Oliveira. Sou dono de um dos criadouros de cavalos desta cidade.
— O que te faz pensar que eu sou um ditador, Sr. Guilherme?
— Ao utilizar seu incrível poder de persuasão e manipulação você consegue instigar toda uma população para lutar até a morte contra uma força superior. Você quer nos transformar em seus peões, mas não leva em consideração nossos sentimentos ou opiniões. Você está mesmo preocupado conosco ou suas palavras não passam de mentiras, sociopata?
— Hahahahaha! Sociopata! Este homem foi capaz de descrever você perfeitamente, Adam!
Ellen começou a rir sem controle, ignorando o clima pesado daquela conversa. Adam fez uma careta emburrada.
 — Sr. Guilherme e Srta. Ellen, saibam que discordo completamente da opinião de vocês. Eu não me considero um ditador, e sim um rei. Um ditador manipula seus súditos enquanto fica escondido dentro de sua casamata¹. Já um rei luta ao lado de seu povo no campo de batalha! Se for para morrer, eu morrerei protegendo aqueles que me seguem!
[1 – Casamata – É uma instalação fortificada à prova de projéteis]
O tom de voz de Adam tornou-se confiante e imponente novamente.
— Mesmo se nenhum de vocês levantar a mão, eu irei até aqueles lobos e lutarei com todas as minhas forças! Se for necessário, trocarei minha vida pelo futuro de vocês!
Guilherme arregalou os olhos, perplexo.
— Essa é mesmo a Legião que matou milhares de inocentes durante a queda do paraíso...?
Em seguida ergueu sua mão direita, surpreendendo todos que estavam naquela praça.
— Muito bem, irei emprestar a minha força. Mas saiba que não estarei lutando por um rei. Estarei lutando pelo futuro da minha mulher e dos meus filhos.
Adam sorriu educadamente.
— Isso é mais que o suficiente.
Guilherme retribuiu o sorriso.

— A propósito, qual é o seu nome?
— Ah, droga! Esqueci completamente de me apresentar! Eu sou Adam Klann, atual presidente da República do Rio.
Essa declaração foi seguida por um novo tumulto. Surpresa, espanto, confusão, perplexidade e vários outros sentimentos se misturavam no rosto daquelas pessoas.
— Meu Deus, o presidente em pessoa está aqui!
                — Não é possível!
                            — É mentira! Ele está mentindo!
Mesmo com toda aquela diferença de opiniões, algumas mãos erguidas surgiam em meio à multidão, seguindo o gesto de Guilherme. Em menos de um minuto haviam cerca de trinta voluntários.
— Adam, isso foi incrível...  Ainda não estou acreditando que você conseguiu!
Ellen pulou de felicidade e inconscientemente segurou as mãos de Adam. Por causa do toque repentino o coração do garoto moreno começou a pular em seu peito, e seu sangue esquentou de uma forma que suas orelhas ficaram vermelhas. Por algum motivo em vez de palavras, um gemido escapou pela sua boca.
— O que foi isso...?
Ellen largou as mãos de Adam imediatamente ao notar o que seu toque estava fazendo com ele, corando igualmente.
Após vários segundos tentando se livrar do constrangimento, a garota de cabelos brancos encarou a população de Jothenville, onde também se pronunciou.
— Por favor, agora eu preciso que todos prestem atenção em mim! Irei contar tudo que descobrimos sobre os ataques dos lobos, sobre a pessoa de capuz vermelho e os monstros que assassinaram três pessoas na noite de ontem.
Um silêncio gelado tomou conta da praça central de Jothenville. Ellen respirou profundamente e continuou a falar da forma mais convincente que podia.

◊ ◊ ◊

— Você acha mesmo que montarei neste bicho? Ha ha. Impossível!
O rosto de Ellen estava pálido. Suor frio descia pela sua nuca.
Parada na sua frente estava uma égua branca de crina castanho escuro. Apesar de um pouco desnutrida, a montaria aparentava estar bem saudável.  
— Aah... Minha missão foi um sucesso! Além de conseguir dezenas de voluntários também ganhei as montarias! O Sr. Guilherme é mesmo uma boa pessoa...
Adam se vangloriava enquanto fitava todas as outras pessoas que se preparavam para a jornada que estava por vir. Entre os armamentos haviam principalmente espadas e algumas armas de fogo pegas no humilde quartel general da cidade.
— Ei, você ouviu o que eu disse?! Não deixarei que um animal selvagem me carregue! Irei caminhando até o comboio!
Ellen deu as costas e começou a andar apressadamente rumo a saída da cidade, mas Adam segurou seu pulso firmemente, impedindo-a de prosseguir.
— Ell, o comboio está à uma hora e meia de caminhada. Se usarmos a montaria, iremos alcançá-los em apenas vinte minutos.
— Não importa o que você diga. Morrerei de cansaço mas não montarei neste animal asqueroso, irracional e nojento!
A égua grunhiu ofendida, e em resposta cuspiu em Ellen. A baba do animal escorreu pelo rosto da garota de cabelos brancos.
— Uuaah!!
— Oh! Até parece que ela entendeu o que você disse!
Adam falou, impressionado. Já Ellen abaixou a cabeça e começou a rir de forma maníaca.
— He he he he... Primeiro cortarei sua carne em fatias bem finas... Depois irei temperá-la com um delicioso molho, para enfim, FAZER UM CHURRASCO!
Com a velocidade de um tigre, Ellen roubou uma das facas de Adam, e com o sorriso de uma hiena, apontou-a na direção da égua. Se Adam não tivesse segurado seus ombros, Ellen com certeza teria atacado o animal.
— Acalme-se, Ell!
— SOLTE-ME, ADAM! Esta faca é bem afiada, não é?! Ha ha ha... Tenho certeza de que você também está morrendo de fome, então por que não me ajuda? A carne dela ficará deliciosa após ser assada no espeto!
A égua relinchava, ou melhor, gargalhava sem parar. 
— Ell, você pode reclamar o quanto quiser, mas nós iremos usar as montarias!
Ellen bateu os pés no chão como uma criança birrenta.
— Eu nunca volto atrás com as minhas palavras, Adam! Eu NUNCA irei subir neste animal.
[...]
UUUUUUUAAAAAAAAAAHHHHH!!!
Assim que os portões de Jothenville foram abertos, dezenas de cavalos avançaram pela estrada lamacenta e irregular.
Ellen gritava histericamente enquanto abraçava a cintura de Adam com todas as suas forças. Sempre que a montaria saltava, o coração da garota de cabelos brancos pulava para a garganta.
— Yahooooo!!
Adam gritou animado e aumentou ainda mais a velocidade, liderando Guilherme e às outras 27 pessoas que haviam se voluntariado para proteger o comboio de alimentos.
Às gigantescas árvores da floresta de Caaporã eram apenas vultos fantasmagóricos. Aquele grupo avançou a toda velocidade até que em um certo momento Ellen gritou.
— Parem todos! Tem alguma coisa errada...
Surpreso, Adam puxou as rédeas da sua montaria e ordenou que todos os outros parassem.
— O que está errado?
Guilherme, que estava logo atrás perguntou, confuso.
— Estou com um mal pressentimento... Alguma peça não está se encaixando...
Ellen pulou da égua e correu até o centro da estrada.
— ...Adam, lembra daquilo que você falou antes de sairmos da cidade? Você disse que levaríamos 20 minutos para alcançar o comboio, mas já estamos correndo há quase 40 minutos sem ter nenhum sinal deles.
Ellen começou a girar pela estrada, fitando a floresta ao seu redor enquanto tentava encontrar a resposta para aquele enigma.
De repente a voz de Owen ecoou pelo seu subconsciente. Ela havia lembrado de uma conversa que eles tiveram dentro do quarto da pensão na noite anterior.
‘Não acredito que Marcos saia avisando para toda a cidade o momento exato em que o comboio de alimentos estará se aproximando. Então só resta acreditar que alguém próximo a ele esteja vazando as informações para a pessoa de capuz. Como você suspeita pode ser a própria governanta, ou talvez a cozinheira...’
Ellen finalmente compreendeu o que estava errado naquela afirmação.
— Marcos Arthmael nunca pediu para que enviassem alimentos... É a única explicação...
Um clima de confusão tomou conta de todos os voluntários.
— Espera. Se não existe um comboio, por que nos avisaram que os alimentos estavam chegando? Isso não vai contra a política da pessoa de capuz? Aparentemente ninguém deveria sair daquela cidade, certo?
Adam perguntou.
— Isso não é uma fuga, é uma caçada. Nós somos os coelhos correndo na direção dos lobos... Estamos indo de bom grado até a armadilha.
— Armadilha?
— Na noite de ontem ficou claro que nós somos ‘indesejados’. O ‘controlador’ dos demônios deve ter percebido que foi um erro tentar se livrar da gente dentro da cidade. Por algum motivo é necessário que a cidade continue ‘alienada’ quanto ao que está acontecendo... Por isso permitiram que nós saíssemos da cidade.
— Assim poderiam nos eliminar sem despertar a desconfiança de toda a população...
Adam completou.
— Bingo.
Nesse momento grunhidos ecoaram por todos os lados. Dezenas de lobos começaram a sair de dentro da floresta, cercando o exército formado por Adam. Haviam tantos deles que era impossível contá-los.
— Caímos direto na arapuca...
Adam e todos os membros de seu exército voluntário sacaram suas armas, preparando-se para a batalha eminente.
Um cavalo branco saiu detrás de uma árvore, e abriu caminho por entre os lobos selvagens. Montado nele estava a pessoa de capuz vermelho. Na sua face havia uma máscara diferente daquela que Ellen viu na primeira vez. Dessa vez a pessoa de capuz usava uma máscara preta com desenhos florais em vermelho sangue.
— Nos encontramos novamente, chapeuzinho.
Ellen falou com um sorriso, sacando o Sensorium de Owen.
Em silêncio, a pessoa de capuz ergueu seu braço direito, ordenando que seus lobos avançassem.
Eram trinta pessoas contra cerca de duzentos lobos.

◊ ◊ ◊

— Este é o lugar...
Um equipe formada por quinze pessoas, equipadas com armas mais simples, que variavam de facas até pedaços de madeira, chegaram até a entrada do labirinto subterrâneo que ficava próximo a capela de Jothenville. Aquela era a passagem encontrada por Ellen e Adam durante a procura por Owen na noite anterior.
Os voluntários recrutados durante o nascer do sol foram divididos em dois grupos. Um deveria proteger o comboio de alimentos enquanto o outro teria como missão investigar os túneis a procura de todas as pessoas que desapareceram durante essa semana sem alimentos, incluindo Owen.
Liderando essa segunda equipe estava Karen.
— Certo. Todos aqueles que possuem uma lamparina, acenda-os.
Karen falou confiante. Em seguida fitou a pequena garota ruiva que respirava fundo ao seu lado.
— Sofia, você está pronta?
Sofia acenou afirmativamente. Karen deu um sorriso e sacou uma pequena faca de uma bainha em seu tornozelo, entregando-a em seguida para a garota pintora.
— Não saia de perto de mim, entendeu?
— Sim...
Apesar de todo aquele medo que fazia seu corpo tremer, a sede de vingança que preenchia sua mente era ainda mais forte.
— Assim que descermos peço que fiquem atentos. A minha missão é trazer todos vocês de volta, vivos... JÁ A NOSSA MISSÃO É RESGATAR A LIBERDADE QUE FOI ROUBADA DE JOTHENVILLE!!
O urro de Karen foi seguido pelo grito empolgado de todos os outros voluntários.
— Como diria meu irmão... O grande show começa agora.
Em fileira eles desceram para o labirinto subterrâneo.
Poucos minutos depois Bianca também chegou nessa mesma entrada. Ela ainda não havia passado em casa, por isso não sabia do falecimento de sua mãe e irmãos.
— Desculpe-me, Aria... Eu não posso permitir que você continue com isso...
A garota de cabelos pretos observou a pistola antiga que ela segurava com força. Um olhar determinado tomava seu rosto.
— Eu com certeza te salvarei das trevas que aquele homem impôs a você.

◊ ◊ ◊

Dentro de seu laboratório subterrâneo, Marcos Arthmael fazia experimentos utilizando o sangue de Owen. Os alvos eram pequenos camundongos brancos que morriam sempre que eram expostos a cura.
Poucos metros atrás estava Owen, ainda inconsciente sobre uma mesa.
Marcos estava sendo bem cauteloso quanto aquele garoto. A cada vinte minutos ele aplicava uma grande quantidade de anestesia no braço dele.  Sobre um pequeno aparador ao lado da mesa haviam dezenas de frascos cheios de sangue.
— GROAWWWW!!!
Um rugido gutural ecoou pelos túneis. Aquele era um sinal de que haviam pessoas invadindo a fortaleza subterrânea.
Marcos deu um soco em cima da mesa e mordeu o lábio inferior, furioso.
— Eles não foram para fora da cidade?! Merda... Eu preciso de mais tempo...
Marcos ordenou que todos os seus súditos modificados comparecessem ao laboratório. Um após o outro eles chegavam. Em menos de dois minutos já haviam dezenove deles.
Dio tomava a frente daquele exército de monstros, como uma espécie de líder.
— Até que a fase 1 esteja completa não posso deixar que as pessoas ‘de cima’ descubram sobre a cura. Vão e matem todos! ARRAQUEM A CABEÇA DE TODOS ELES!!
Marcos gritou em fúria.
Os mutantes urraram e saíram do laboratório a toda velocidade. Na dianteira Dio sorria maniacamente, pois um cheiro peculiar invadia seus pulmões. O cheiro da sua família.
Marcos imediatamente voltou ao trabalho enquanto gargalhava.  
— Você não está feliz, Sr. Owen? Eles estão vindo aqui para resgatar você. Eles vão morrer tentando salvar você.
Não houve uma resposta audível, mas o dedo indicador do garoto imobilizado se moveu lentamente.

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5 comentários:

  1. Muito boa a sua série. Apesar de gostar muito dessas histórias muito sombrias, a sua me surpreendeu. Os personagens são bem legais, incluindo a ellen, morro de rir com os ataques dela. Agora só queria tirar uma dúvida. Quem é o cientista citado no começo de Athazago. É o owen ou o marcos? Pelo jeito os dois perderam/mataram? alguém no passado. Fiquei confusa com isso.

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  2. o cientista é o marcos. No primeiro capitulo ele fala sobre isso, mais é comprovado no final quando aparece a mulher no caixão toda costurada.

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  3. Valeu por mais um capítulo! Owen finalmente mostrou que é fodão e marcos parece que vai dar trabalho (Nice battle).

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  4. Muito obrigado pelo apoio. No próximo capítulo teremos o fechamento de todas as pontas soltas, e a início da batalha final. Fique na espectativa haha.

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  5. É bom saber que você está curtindo, Mariana. E como o Carlos Andrade disse, o cientista citado no começo de Athazagoraphobia é mesmo Marcos. Teremos isso mais bem explicado no próximo capítulo, até lá.

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