Chryskylodon - Episódio 2 - Fila / Sopa / Toalha de Mesa / Nox


Demorou, mas chegou!

Foi bem mais culpa minha do que do pobre autor, então como diria o sábio Akon: You can put the blame on me (Você pode colocar a culpa em mim)

De qualquer forma, espero que curtam mais esse capítulo. Ah, e alguns avisos de caráter geral:

Vão se preparando psicologicamente, que teremos novidades por aí. O site anda bem (BEM) parado, seja por motivos pessoais dos autores - como minha incorporação no exército, o que torna difícil a escrita -, ou qualquer outro, logo estaremos a todo vapor!

É isso, pessoal! Boa leitura!

Não esqueça da música para ouvir enquanto lê!




Chryskylodon


Episódio 2: Fila. Sopa. Toalha de mesa. Nox.


“O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado”
Jean-Jacques Rousseau


Parte A: “Gonna go to the place that’s the best”

            Don Torino quase pulou de susto quando o trinado do sinal tocou absurdamente intenso no seu quarto. “Arg. Mas que desnecessauro...”. Com o barulho deixara a chave do quarto cair. Nela havia a etiqueta com a numeração dali 7A1. “Bem, pelo menos não peguei o quarto 666”. O som agudo parou e ele lembrou que o sinal representava o almoço ou lanche ou ceia ou incêndio. Mesmo que não estivesse com muita fome estava curioso. E mesmo que fosse incêndio, não estava com tanta pressa assim... Por isso pegou a chave, saiu e trancou a porta, como Isaka lhe havia recomendado: “nós só nos responsabilizamos por objetos que você tenha declarado ser de seu pertencimento. Caso contrário é por sua conta”.

            A recepção inicial de Don estava sendo satisfatória, embora estivesse achando um pouco rude demais. Pensara que seria acolhido de braços abertos por pessoas sorridentemente felizes e de boa com a vida, o universo e tudo o mais, numa paz branca e infinita que não encontrava pelas ruas repletas de seriedade e ratazanas quase-mutantes e monóxido de carbono de Machi, sua cidade natal. Contudo a realidade mais uma vez quebrara seus sonhos, em cacos finos e afiados, sendo irreparável. A loucura era característica inerente daquele lugar, como esperava. Loucura tal que ele experimentara e, consequentemente por mal seu, mas bem da sociedade, fora enviado até ali. (In)felizmente desconhecia o que viria a seguir. Isaka, a sua guia de cabelos longos e loiros e um tanto esquisita devido ao seu pequeno problema de mudança súbita de humor, era a única que Don se relacionara amigavelmente, pode-se dizer assim. “É. Vamos ver como é o resto”.

            Após ter andado alguns metros após sair de seu quarto, que ficava na ala leste, Don Torino deparou-se com a fila: uma enorme e surpreendente fila que circundava pelos corredores do Centro de Tratamento Psíquico e Reaprendizado Social (pois “Reabilitação” era um termo muito forte, segundo Merila e Lear, um idoso político pouco conhecido da cidade de Kyoki). Don viu que todos da fila apoiavam seus braços direitos no ombro do próximo. Achou que aquilo era algo infantil demais, quase como um “trenzinho ridículo” para pessoas naquela idade. “Só falta eles cantarem agora: somos amiguinhos yeah!”, ironizou mentalmente. Todavia posicionou-se atrás do último.

            Segundos parado ali e alguém encosta em seu ombro direito. Ele imediatamente vira-se e pergunta:

            -Ei, o que foi, camarada?

            O camarada, de complexão alta, obesa e calvo, levantou as sobrancelhas, como numa demonstração de dúvida, como se Don fosse um completo ignorante e extraterrestre.

            -É a fila para a sopa, oras.

            -Mas por que motivo santo há a necessidade de colocar a mão no meu ombro?

            -Oras. Você nunca ficou numa fila aqui não?

            Don manteve a expressão séria. O obeso entendeu que o silêncio era uma afirmação.

            -A gente coloca o braço no ombro do outro para organizar a fila, manter ela ordenada e única. Você nunca viu que todas as filas que as pessoas fazem por aí são tortas e bagunçadas e enroladas e nunca se sabe onde começa, onde termina, onde é o meio, onde é o final... não? Oras, a gente aqui tenta fazer uma coisa mais certinha. E também a gente coloca a mão no ombro do outro pra dizer: “Ei, eu estou aqui, caso aconteça algo ruim, saiba que eu estou aqui para te ajudar. Você não vai morrer, tá? Eu estou aqui.”. E também pra dizer: “Ei, eu sei que a fila tá enorme, mas saiba que tem mais gente atrás de você. Então não fique triste, porque você não é o último”. E também pra...

            -Tá, tá, tá – Torino deu tapinhas no obeso para ele parar de falar – Eu entendi.

            Hesitando, Don colocou sua mão direita no ombro direito da mulher que estava a sua frente. Ela respondeu com um “obrigado”. Ele foi incapaz de dizer porquê.

            -Ei – o obeso o chamou – Aliás meu nome é Enéias. Prazer.

            Apertaram as mãos.

            -Eh... prazer – retribuiu.



Parte B: “Prepare yourself, you know it's a must”

            Ele já estava na fila há 27 minutos. Enéias já havia comentado sobre os diversos quadros espalhados pelos corredores do Centro. Mas um chamou-lhe a atenção; isto pois parecia-lhe que já avistara aquela imagem em algum lugar. Somente faltava-lhe a memória para relatar especificamente de onde... Don questionara Enéias, o homem-que-era-seu-seguidor-pois-estava-com-a-mão-apoiada-em-seu-ombro, sobre aquele quadro.

            -Ah. Esta é a visão da estrada 44. Lá você vê a ponte Stargate, que foi construída há séculos em homenagem a um advogado da família Kobata, famoso aqui pela região por nunca ter perdido um caso. Muitos que vêm para cá pegam esta estrada. Eu não. Eu vim pela 87.

            -Hm...

            Torino analisou a obra com seus traços impressionistas, com seu preto e branco marcantes, provocando uma sensação de solidão e depressão. Ele sabia que a melancolia da imagem retratava mais do que apenas aquele local. A própria pintura era uma metáfora. Ele entendia um pouco de arte, apesar de ser leigo em outros tipos de artes não plásticas. Tivera aulas (esquecíveis e perturbadoras) de pintura quando criança.

            -...bem? Hei! Don.

            Somente quando Enéias o cutucou ele parou de analisar o quadro.

            -É uma bela obra – Don comentou.

            -É sim. E foi pintada por uma residente. Viktória. Era uma bela moça. Pena que se matou. Ou sumiu. Hum. Ninguém sabe ao certo. (a verdade é que o ex-diretor administrador daqui do Centro era meio desleixado, sabe? Então nem buscou se envolver com esse caso de polícia. Deixou por isso mesmo, sabe?) – esclareceu de sussurros.

            -Entend...

            -HUAHASWAHUAHSAIIIII!!!!

            -Mazoqu...?

            Como um vulto de fogo que perambula aturdido, uma pessoa em chamas passava correndo pelo corredor, gritando (por socorro ou de entusiasmo não se sabe ao certo). As labaredas coruscantes elevavam-se metros acima daquele homem. As pessoas da fila olharam, sem gritar ou demonstrar qualquer reação de surpresa ou pânico ou vontade de ajudar. Quando passou perto de Torino e Enéias ambos puderam sentir o calor que emanava do corpo daquela criatura. Logo atrás vinham duas pessoas com roupas de bombeiro, carregando uma grande mangueira para tentar apagá-lo. No entanto elas estavam lerdas demais para conseguirem alcançar o homem em chamas. Don deu um passo para agir em ajuda. Enéias logo o segurou:

            -Relaxa. Eles só tão brincando de Fogaréu. Daqui a pouco eles param.

            -Tá, mas e o cara que tava pegando fogo?

            -Ah. Ele é pego pelos bombeiros que apagam o fogo, se eles conseguirem alcançar, né. Se não... Se não ele perde, oras.

            Don não entendeu:

            -Como assim “ele perde”? Você quer dizer que ele... morre?

            -É. É assim a brincadeira, oras. Quem brinca bem sabe o que pode acontecer de bom e de ruim. Só que a Merila agora tá proibindo essa brincadeira. Eles fazem mesmo assim. Você chegou a conhecer a Merila, né?

            Sim. Relembrou: os seus olhos dourados (sim, literalmente dourados); os seus modos, a sua recepção. Don não estava apaixonado por ela. Não. Não estava admirado com sua beleza, apenas. Mulheres bonitas existem em todo o mundo. Estava fascinado com o jeito dela, que combinado com a aparência, a tornava única.

            -Conheci – afastou o pensamento dela.

-Bem. Ao menos isso. Mas você ainda não sabe de nada mesmo do que acontece por aqui, né? Ninguém te explicou bulhufas ainda, né? Então se prepare meu amigo, se prepare. Senão você não sobrevive. Ha.

            Don retornou a sua posição de fila.

Agora admirava o chão.    


Parte 3: “Never been a sinner. I never sin”
           
            -É sopa então…?

            -É.

            -É sempre sopa?

            -Não. Às vezes é estrogonofe de carne bovina ou arroz com algas azuis ou assado de frango (eu acho que é frango) ou outras coisas mais que a nutricionista receita. Eu adoro a lasanha. Lasanha, lasanha! Pena que poucos dias eles fazem lasanha. Hm.

            -Tá.

            Estavam próximos de entrar no refeitório principal. Pessoas saíam pela porta de entrada, fumando ao lado da placa de “não fume”, sentadas abaixo do extintor de incêndio. “Tem cada um rebelde, hein”. Uma mulher (ou seria homem?) alta e ereta fumando olhou-o fixamente com seus olhos azuis turvos. Um calafrio percorreu seu corpo. “Hã?”. Agitou-se. Voltou a sentir aquela terrível vontade de fazer algo, sem saber o quê. Queria um lápis, um lápis para mastigar, um lápis para mastigar e saciar sua vontade, sua mania, seu vício. Queria se mexer, queria ir. Aonde? Não sabia.

            -Hei, se acalme, Don, se acalme. Tome isso aqui que melhora.

            Enéias entregou-lhe a pílula roxa. Don devorou-a na hora. Fechou os olhos. Apertou-os, na verdade. Segundos após estava calmo, quase normal.

            -O que foi isso?

            -Ah. Acho que acabou o efeito do pare que te deram quando chegou.

            -Pare?

            -É. A pílula. Que eu acabei de te dar.

            Ele não se lembrava de ter tomado uma pílula quando chegara.

            -Hm. Enfim, aquela mulher, eu...

Agora, dentro do refeitório, bastou Don Torino avistar as toalhas de mesa dispostas sobre as diversas mesas do local que pulsou mais forte. Começou a tremer. “Aarg. Que droga...”. Sua fobia começava a corroê-lo. Contou até três. Até dez. Até quarenta e dois. Inspirou em três segundos. Expirou em seis. Grunhia.

-Ei, Enéias, você tem mais uma pílula daquela?

-Ah, tenho. Só que não é bom você tomar duas consecutivas. Por quê?

-É, eu, que. Arg. Um probleminha com. Aquilo.

E apontou as toalhas.

-O quê? Pessoas? Sopa? Cadeira?

-Não. Toalha. De mesa.

-E o quê que tem?

-O quê que tem? – estranhou a normalidade que Enéias respondera – É horrível isso!

-Sim, deve ser. Ha. Mas existem pessoas que sofrem com problemas muito mais horríveis que o seu, né?

“É. Verdade”.

Manteve-se calado diante de uma resposta daquelas. Apenas pegou seu prato, olhou para a sopa [que cheirava bem (“seria essa, então, a de sangue?)] e colocou o montante necessário para abastecer o estômago. Enéias foi sentar-se com outros conhecidos. Don procurou um lugar sem toalha de mesa. Encontrou um, onde um homem branco, robusto sem ser exageradamente forte e aparentemente solitário tomava a sopa na maior calma do mundo. Educadamente, Don perguntou-lhe:

-Eh, posso me sentar aqui?

-Sim.

A primeira colherada e Torino pôde notar que a sopa era melhor do que imaginava. Um gosto de frango (sem ser frango) com legumes e picante na medida certa. Uma textura que ora parecia líquida, ora densa. “Muito boa”, pensou.

-É mesmo – comentou o homem a sua frente.

-Hã?

-A sopa. É boa.

-É...

“Hm. Ele soube que eu gostei da sopa só pela minha cara, será?”.

-Eu sou o Nox – o homem se apresentou – e é melhor você comer rápido porque a briga vai começar daqui a pouco. Mais exatamente em sete.

-Hã? Sete o quê?

-Três, dois, um...

E começou o caos.

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