Chiharu - Capítulo 06



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Chiharu

Capítulo 6

A chuva caía sem pena do lado de fora. O chão da casa estava molhado pelos corpos encharcados que foram abrigados debaixo do teto. Eu não consegui olhar eles nos olhos. Apenas fiquei ali, parado, esperando que eles se enxugassem com as toalhas que eu trouxe. Ninguém disse uma palavra por um bom tempo. Eu olhei na direção do quarto de Shizuka. De vez em quando trovejava e tinha certeza que ela devia estar com muito medo sem mim. No momento em que pensei isso um trovão pôde ser ouvido, bem ao longe. Eu apertei minha calça com força, amaldiçoando a situação em que eu me encontrava.

— Ei, Makoto...

Eu levantei o olhar, ainda cabisbaixo. A voz foi de Yuragi. Ela abriu um pouco a boca pra falar algo, mas não conseguiu e então se calou. Akakyo olhou para a irmã como se estivesse consolando-a. Kaioshi olhou pros dois e depois forçou um sorriso, coçando a cabeça.

— O clima está muito tenso aqui, não é? Por que não ligamos a TV? Onde fica o controle?

Eu olhei para o lugar onde eu deixava o controle. Me estiquei um pouco, peguei e dei para ele. Ele deu um sorriso mal feito e desviou o olhar quando tocou no controle, e então apertou o botão para ligar o aparelho. Um som de estática junto com uma repórter narrando algum crime que havia acontecido ecoou pela sala. Kai passou os canais duas, três vezes, trocando para dois comerciais diferentes e mais um jornalista que falava sobre a inflação. Yuragi, num acesso de nervosismo, provavelmente pela tensão do momento, tomou o controle da mão de Kaioshi e jogou ele no chão, desprendendo as pilhas do objeto. Todos, inclusive eu, olharam assustados para a cena e para a garota de pé, arfando, a franja cobrindo os olhos.

— Droga, eu não aguento mais! O que é isso? Ei, Makoto, o que está acontecendo? Por que estamos todos assim? Diga alguma coisa!

Um trovão rugiu, dessa vez mais alto que os demais. Eu olhei para o quarto de Shizuka e consegui imaginar sua expressão de medo... Não, provavelmente era de preocupação comigo. Os gritos de Yuragi deveriam estar fazendo-a se perguntar o que estava acontecendo. Eu olhei para um ponto fixo no chão onde um pequeno inseto havia acabado de pousar, e então fechei os olhos. Num suspiro, eu os abri. O que minha visão encontrou foram os rostos das três figuras confusas na minha sala. Uma panela de pressão que eu havia deixado na cozinha fazia um barulho de ar escapando, mostrando que estava quase no limite. Eu estava tão nervoso que estava tentando me distrair com esses detalhes mínimos. Mas a verdade tinha que vir a tona em algum momento. Eu não posso fugir pra sempre. Foi então que decidi falar.

— Eu vou contar pra vocês... A história de como tudo foi tomado de nós.


. . .


— Ai!

Nana colou o band-aid no corte que Shizuka sofreu na perna. Ela olhou pro band-aid com uma expressão chorosa de uma criança. Bom, é isso que éramos afinal. Eu olhei para outro lado, desinteressado.

— É isso que você ganha por querer fazer coisas de garotos.

— Garotas podem fazer tudo que garotos podem!

Ela olhou pra mim com raiva, mas seu ferimento pareceu latejar e ela segurou o joelho de olhos apertados.

— Nana, tá doendo!

— Já já vai passar, Shizu-chan.

— Tem certeza?

— Sim! Eu prometo, eu vou sempre cuidar de você.

Aquelas palavras me despertaram para algo que eu não lembrava há alguns dias.

— Oh, então essa vai ser a sua promessa!

— Eh?

Ela olhou pra mim sem ter a menor ideia do que eu estava falando.

— Droga, Nana, você não lembra? Eu falei disso uns dias atrás, de todos fazermos promessas pra cumprirmos a vida toda!

— Ah, isso... Acho que eu lembro de algo assim.

— Isso é bobagem, Makoto. Deixa isso pra lá.

Shizuka e eu tínhamos o costume de brigar muito, e daquela vez não era diferente. Ambos continuávamos empurrando a briga o máximo possível pra ver quem conseguia ficar emburrado por mais tempo.

— Não é bobagem!

— Claro que é! Você disse aquela babaquice sobre salvar o mundo, não foi?

— Bom, é, mas... Eu vou salvar o mundo, isso é um fato! Você acredita, não é, Nana?

Ela sorriu meio vermelha, sem querer magoar meus sentimentos, eu acho. Ou, bem menos provável, ela estivesse impressionada com minha valentia.

— Eu acredito. Se você tentar você vai conseguir.

— Viu só?

Ela virou o rosto para outro lado, bufando as bochechas.

— Então, Nana, essa vai ser a sua promessa?

— O que? Ah... Bom, deixa eu ver....

Ela levou o dedo a boca e olhou um pouco pra cima.

— Sim, acho que sim! Mas eu não vou cuidar da Shizuka, eu vou sempre cuidar de vocês dois!

Eu corei e Shizuka olhou pra nós com o que pareceu ser ciúmes, embora eu não saiba ao certo de quem exatamente. Completamente embaraçado e sem saber o que fazer, eu gaguejei e apontei um lugar qualquer ao longe.

— O-olhem, um guaxinim!

 O quê? Onde?

As duas pareceram dizer as mesmas coisas e olharam na mesma direção, embora Nana tivesse colocado a mão acima dos olhos para procurar. Nesse meio tempo eu peguei um graveto no chão e usei ele pra espetar a bochecha de Shizuka e correr.

— Mas o que... Volte aqui, Makoto!

Era assim. Toda vez que eu ficava com vergonha ou sem saber o que fazer eu provocava o começo de algo idiota e de alguma confusão sem sentido para acabar com o clima de tensão. Era tão bom poder fazer isso quando era criança.

— Mas o quê? Você já consegue andar?

— Volta aqui...!

Mesmo com o corte ela correu atrás de mim enquanto eu gritava, por mais algum tempo. Nana corria atrás da gente, tentando nos acalmar, embora eu pudesse dizer pelo rosto dela que ela também estava se divertindo. Nossa vizinhança apenas contava com nós três de crianças, então estávamos sempre juntos. Eu queria que tudo continuasse assim para sempre. Mas tudo muda.

Tudo sempre muda.


. . .


Uma colher caiu no chão. Todos na mesa olharam pra Shizuka. Ela estava olhando para a mão que tinha derrubado a colher. Nossa mãe se levantou da mesa e pegou a colher. 

— O que foi que houve, Shizuka?

Ela perguntou enquanto se levantava e ia para a cozinha lava-la. Shizuka apenas continuou ali, calada, esperando a nova colher. Nossa mãe sorriu e a entregou pra ela.

— Aqui.

Shizuka pegou a colher e olhou para a comida tentando se concentrar. A mão dela parecia tremer por algum motivo. Ela abaixou a cabeça como quem quisesse chorar.

— Não estou mais com fome. Posso ir pro quarto?

Nosso pai parou para olhar também, trocando olhares com a moça de cabelos castanhos na mesa.

— Você está se sentindo bem?

Ela perguntou com uma voz gentil e um sorriso no rosto. Shizuka corou um pouco e exagerou um pouco ao responder.

— Eu estou bem! Eu juro! Eu só quero ir pro quarto, só isso.

Mamãe suspirou e olhou pra ela com um ar de responsabilidade.

— Tudo bem, pode ir. Eu vou levar um lanche pra você mais tarde.

Sem dizer nada, a Onee-chan se levantou e foi até o quarto. Eu estava totalmente confuso e sem entender nada.

. . .


No outro dia, Shizuka amanheceu bem e comeu direito. No entanto, coisas como aquela estavam começando a ficar cada vez mais frequentes. Começava com Shizuka derrubando alguma coisa, e então ia ficando mais grave, com ela nem mesmo conseguindo segurar alguns objetos como uma xícara de leite. Estávamos começando a ficar preocupados, então meus pais chamaram um médico, que disse que ela estava anêmica. Naquele dia, Shizuka ficou de cama. Eu estava muito nervoso com aquela situação. Eu queria importuna-la para fugir de algo chato como aquilo como eu sempre fazia, mas eu não conseguia, vendo alguém tão precioso pra mim naquele estado. Nana veio nos ver e conversamos por horas sobre nada em especial. Mas, quando ela foi embora, aquele sentimento de tristeza que eu não sabia explicar de onde vinha apareceu novamente.

Eu não me lembro de ter dormido tão mal em muito tempo, quanto eu dormi naquela noite.


. . .


— Diga “Ah”.

— Aah!

O médico usou a lanterna e um palito pra examinar a boca de Shizuka. Não passou muito tempo, ele se levantou e olhou para os dois pais preocupados logo ao lago.

— Ela parece apenas estar um pouco anêmica. Não me parece nada grave.

Os dois pais se entreolharam, ainda preocupados. O médico sorriu e se aproximou, tocando no ombro do pai.

— Não se preocupem, vai ficar tudo bem. Vocês só precisam ficar de olho no que ela come.

— Vamos fazer isso.

Meu pai disse e olhou para a garotinha, que parecia um pouco abatida. Sem saberem, eu ouvia e via tudo pela fresta da porta.


. . .


— Vamos, Shizu-chan, você tem que comer. Você estava se sentindo melhor de manhã, vai acabar piorando de novo.

A onee-chan mexia na comida sem querer coloca-la para dentro. Mas com os incentivos constantes da minha mãe ela acabou por comer tudo. Minha infantilidade estava começando a me deixar enciumado. Tudo bem que ela estava um pouco doente, mas eles não precisavam dar toda a atenção só para ela daquele jeito. Depois do almoço eu fui caminhar um pouco enquanto chutava uma latinha amassada. Na minha caminhada acabei indo parar num caminho que nunca tinha tentado antes. Naquele caminho havia uma casa muito bem feita com um jardim até mais bonito que o dos Suzuyama.

— Que casa bonita...

Eu chutei a latinha pra longe e ela saiu descendo pelo barranco coberto de grama que havia ali.


. . .


Vários dias se passaram. Havia dias em que Shizuka acordava e passava completamente bem, como se não houvesse problemas. Mas havia dias em que suas crises de fraqueza ficavam piores. Continuamos chamando o médico para vê-la e ele sempre dizia um motivo que não resolvia em nada. Nossa cidade não contava com um hospital na época. Ela era e é uma cidade pequena, onde o costume era de que médicos viessem atender em casa. Pensando bem, eu lembro como minha irmã caía com frequência, e o quanto meus pais ficavam preocupados... E quando chegou ao nível de ela nem mesmo conseguir sair da cama, eles entraram em desespero.

— Desculpem, eu não sei o que fazer. Talvez o melhor fosse leva-la a algum outro hospital ou procurar um médico mais especializado. Eu tentei de tudo.

Nossos pais o levaram até a porta, e o velho se despediu com um toque em seu chapéu marrom. Minha mãe tentou, mais tarde, convencer Shizuka a ir até o hospital em outra cidade. Ela estava no quarto brincando de boneca com Nanami. Eu não estava junto. Eu sentia que estava cada vez mais me afastando da minha irmã.

— Mas eu estou bem!

— Sim, querida, mas temos que ir pra lá se quisermos fazer você não piorar de novo.
— Mas a Nana está aqui e estamos nos divertindo muito.

Eu sinto que ela lutou contra isso, mas não queria desfazer a vontade da filha. Meu pai estava falando com um amigo no telefone.

— Sim. Sim. Obrigado. Podemos traze-la aqui. Deve ser melhor deixa-la num ambiente familiar em casa.

Os dois adultos se arrumavam enquanto as garotas se divertiam num quarto e eu ficava sozinho jogando videogame. Eu já havia quebrado quase todos os records da minha irmã. Novamente, minha infantilidade falava mais alto num momento como aquele.

— Nós vamos sair, Shizu-chan. Vamos trazer a doutora aqui pra descobrir o que você tem.

— Tá bom, mamãe!

— Isso é bom, não é, Shizu-chan? Você vai melhorar!

— Sim!

As três vozes femininas se misturavam no quarto. Meu pai tocou meu ombro e me assustou um pouco, me fazendo parar de apertar os botões. Meu personagem estava começando a receber ataques dos esqueletos e sua vida descia um pouco a cada golpe.

— Cuide da sua irmã enquanto estivermos fora. É a sua responsabilidade, Makoto. Me deixe orgulhoso.

— Por que eu que tenho que cuidar dela?

— Ela é sua irmã mais nova, não é?

— É, mas eu não a escolhi!

— Você ama a Shizuka, não ama?

Eu não consegui responder. Eu joguei o controle contra a tela da televisão, causando um baque surdo.

— Shizuka, Shizuka, tudo é sobre ela! Vocês tem outro filho, sabiam!?

Eu levantei com os olhos cheios de lágrimas. Eu esperava que meu pai fosse brigar comigo, me dizer o quanto eu estava sendo egoísta e proteger a filha favorita deles mais uma vez. Mas ao invés disso ele apenas colocou a mão na minha cabeça e sorriu. Eu não aguentei aquilo. Tirei a mão dele da minha cabeça, fechei os punhos e gritei com toda a minha força.

— Odeio vocês! Eu odeio vocês!

— Makoto...

Meu pai parecia decepcionado comigo. Não, talvez ele estivesse decepcionado consigo mesmo. Ouvir que um filho odeia você, por mais precipitado que possa ter sido, deve ser doloroso. Nossa mãe nos olhou de longe, igualmente desapontada. Eu virei de costas e não olhei mais na cara deles, apenas observando as sombras se moverem na minha frente, como um teatro.

— Desculpe, Makoto. Quando voltarmos conversamos melhor sobre isso.

— Makoto, eu quero fazer um chá para a médica quando chegarmos, então esquente um pouco de água pra mim, está bem?

— Nós voltamos logo.

Eu não respondi nada. Apenas fiquei ali, as lágrimas escorrendo, observando as sombras à minha frente serem cobertas pela sombra maior da porta.


 . . .


Chuva. Apesar de tudo, eu estava esquentando a água para a minha mãe. No fim das contas eu queria realmente chamar a atenção deles, então achei que se fizesse aquilo eu poderia ganhar alguns pontos. Eu estava com medo da água não esquentar o bastante a tempo de eles chegarem, por que decidi fazer isso muito tarde. Mesmo assim, eles não chegaram. Nana teve que ir embora por causa do horário e Shizuka ficou brincando sozinha no quarto. Eu estava inquieto e não conseguia parar de me mover. Eu toquei a panela com água que eu havia esquentado.

— Está fria...

Onde eles estão...? Era tudo que eu conseguia pensar.

Mas eu preferia nunca saber a resposta.

— Makoto, Shizuka!

O pai de Nana abriu a porta de repente e me assustou. Eu estava sentado no chão com as costas no sofá, agarrado aos meus joelhos. Meus olhos brilharam com um trovão e o vento frio da noite pareceu atravessar a minha espinha. Apesar de ter entrado com toda aquela veemência, ele pareceu se segurar para dizer algo, apertando seu punho com força. Eu percebi uma lágrima escorrendo pelo rosto dele.

— Suzuyama-san, o que aconteceu? Os meus pais! Onde estão os meus pais!?

Sem resposta, o homem apenas ficou ali, parado, numa tentativa inútil de evitar soluçar.

— Suzuyama-san!

Shizuka saiu do quarto e se apoiou, sem conseguir se sustentar direito, na parede da porta.

— Makoto-kun, seus pais... Seus pais, eles...

Morreram. Meus pais morreram num acidente de carro que nem mesmo foi culpa deles. Um carro maior se desgovernou por causa da chuva e acabou atingindo-os. Houve uma explosão como resultado do acidente, e ambos meu pai e minha mãe, além do motorista do outro veículo e a médica que eles levavam com eles morreram na hora do impacto e tiveram seus corpos carbonizados pelo fogo, irreconhecíveis.

Eu olhei para um ponto fixo no chão, tentando absorver o que eu tinha ouvido. Era o inferno. As lágrimas escorreram pelo meu rosto e molharam o chão. Shizuka não se aguentou e caiu, ficando sentada com as lágrimas nos olhos. Eu estava desesperadamente à procura de algo no universo para culpar. Eu tinha como opções Deus e o Destino. Mas o que estava mais perto de mim ali era ela. Minha mãe e meu pai, eles... Por culpa dela...

— É tudo sua culpa! Se você não tivesse ficado doente, se você não tivesse preocupado eles, se você...

Aquilo foi demais para a mente da garotinha. Ela começou a chorar ainda mais desesperadamente do que eu. Eu não achava que ela tinha aquele direito de chorar. Eu fechei os olhos e corri, conseguindo passar pelo homem de cabelos pretos, que chamou meu nome, e adentrei a chuva.

— Makoto!

Eu não me importei e continuei correndo até escorregar no barranco gramado na frente da casa bela casa que eu admirei algum tempo atrás. Como resultado, eu me machuquei e me sujei completamente, mergulhado em choro.

E meus pensamentos foram...

Se a mamãe estivesse aqui, ela ia brigar comigo, ia passar remédio e lavar a minha roupa...

Se o papai estivesse aqui, ele ia me acalmar até eu parar de chorar e me faria levantar novamente....

Não era culpa da Shizuka. Não era a culpa de ninguém. E não aceitar aquilo estava me destruindo.

— Deus! Eu... Eu... Eu vou cuidar da Shizuka daqui pra frente... Eu vou ser um bom irmão... Por isso, devolva eles pra mim! Eu não fiz nada! A mamãe... Ela disse que ia fazer chá, eu até esquentei a água pra ela... Então por que... Por que ela não está aqui agora!?

Eu estava tentando culpar a segunda coisa mais perto de mim naquele momento, um Deus que eu sequer havia visto. Eu olhei pra cima esperando uma resposta que nunca chegaria.

— E o papai... O papai, ele...


Eu lembrei da imagem dele sorrindo e colocando a mão na minha cabeça. Agora que eu o havia perdido, aquela imagem significava muito mais do que um gesto de quem não sabia o que dizer...

Aquilo dizia: Tenho tanto orgulho de você... Como você cresceu... Você é ainda é uma criança... Você ainda vai entender... Desculpe, filho...

Eu amo você.

O grito que saiu de mim atravessou a noite e certamente partiu o coração de quem quer que tenha ouvido.


. . .


O velório dos meus pais foi simples, afinal, os corpos deles não estavam sendo de fato enterrados. Shizuka segurou o tempo todo na minha mão. Tentamos, através daquele simples gesto, suportar a dor um do outro. Eu ainda não conseguia me perdoar por dizer aquelas coisas terríveis para ela... E nem pelas últimas palavras que disse aos meus pais: " Eu odeio vocês. "

Agora órfãos, tínhamos que ir morar com nossos tios. Isso queria dizer que íamos perder nossos pais, nossa casa e nossa única amiga, Nana. Ela ficou aos prantos quando foi se despedir de nós. Já estávamos dentro do carro, e o pai de Nana precisou segura-la para ela não vir conosco. Eu fiquei com as mãos no vidro do fundo do carro olhando a figura dela foi ficando um pouco menor com o inicio do movimento. Shizuka pareceu juntar todas as suas forças. Abriu a janela e gritou pra Nana com tudo o que tinha.

— Nós vamos estar sempre juntos! É a minha promessa!

Me surpreendeu que ela tinha lembrado daquilo naquele momento. Nana sorriu querendo, na verdade, chorar, e assentiu com a cabeça. Shizuka continuou olhando pra fora até a figura da loirinha sumir totalmente do nosso alcance.


. . .


— Passamos algum tempo com nossos tios e depois fomos morar com nossos avós. Minha tia não tinha relações sanguíneas com minha família, e o dinheiro e o tempo deles era curto para gastar com crianças que nem eram deles. Quando ela engravidou, meu tio cedeu e foi obrigado a nos mandar para morar com nossos avós. Moramos com eles até eles morrerem. Meu avô foi primeiro, não muito depois, minha vó. No início eles cuidavam de nós, mas com o tempo, eu que tinha que cuidar deles. A condição de Shizuka piorou com o tempo, chegando ao nível que ela não mais falaria nem se moveria, a não ser por um ou outro espasmo muscular de vez em quando, e com algumas exceções... De qualquer forma esses movimentos também vão desaparecer, eventualmente, o que me preocupa... Mas mesmo assim eu não quero deixa-la num hospital. Ela é minha família, é a única família que eu tenho, e eu sou a única família que ela tem. Ela não ficaria confortável com isso. E acima de tudo... É minha responsabilidade cuidar dela, afinal ela é minha irmã.

Minha garganta estava seca depois de contar toda a história. A panela de pressão fazia barulho como louca, e além desse som, apenas o silêncio reinava. A chuva estava agora bem fraquinha e não se ouviam mais trovões. Nós ficamos ali parados, sem ninguém conseguir olhar na cara um do outro. A panela parou de fazer barulho e agora só o baque do relógio de ponteiro podia ser ouvido. Ficamos daquele jeito por vários minutos, até que, no que pareceu um estalo de consciência, Kaioshi bateu o punho fechado sobre o aberto como se tivesse feito uma grande descoberta.

— Entendi! Então é por isso que você tem que sair no meios das aulas e sempre chega atrasado no almoço!

O braço pesado de Yuragi acertou o alvo bem na nuca. Ele pendeu pra frente e quase caiu do sofá. Eu estava boquiaberto.

— Você é idiota!? Isso é óbvio, não é?

Eles...

— Ai! Por que você me bateu!?

Esses caras...

— Hunf!

Yuragi cruzou os braços emburrada enquanto Kaioshi alisava sua nuca vermelha. Akakyo fez uma cara de vergonha por aqueles dois, levando a mão até a testa. Depois disso ele descobriu o rosto e sorriu na minha direção. Eu não podia acreditar no quanto eles estavam levando aquilo normalmente.

— Ei, Makoto, por que você não nos falou isso antes?

— Bom, eu...

Eu olhei pra baixo.

— Eu não queria que vocês sentissem pena de mim...

— Bom, é um pouco difícil não sentir pena de você, afinal você está com essa sua cara patética o tempo todo.

A ofensa da ruiva me fez estreitar os olhos e encara-la.

— O que você quer dizer com isso?

Akakyo colocou a mão na cabeça da irmã e começou a bagunçar o cabelo dela, fazendo-a balbuciar protestos impossíveis de serem compreendidos.

— O que minha irmãzinha idiota está tentando dizer é que nós não poderíamos sentir pena de você. Saber disso só nos faz te admirar, Makoto.

— Eh?

Aquela ideia era inconcebível para mim. Osakura continuou.

— É verdade! Eu nunca conseguiria fazer algo assim... Tanta responsabilidade... Você é incrível, Makoto!

— Pessoal...

Aquilo foi um choque de realidade muito grande. Quase como uma epifania pra mim. É, é verdade... Tinha algo que eu havia esquecido, um pequeno dizer que eu aprendi havia muito tempo... A verdade é que os outros são reflexos de você. Aquilo que você acredita de si mesmo é o que os outros vão, no geral, acreditar de você. Não. É o que você vai achar que eles acreditam de você. Naquele momento eu havia percebido o quanto eu não me amo. Na verdade, eu tinha pena de mim mesmo. Então eu acabei achando que todos me odiariam e sentiriam pena de mim. Por isso eu estive evitando eles por todo esse tempo, mas... Não era assim. Todos pareciam me admirar. Osakura, Nekogami... Até mesmo aquela ruiva convencida achou o próprio jeito de me fazer sentir melhor... Mesmo que um pouco, a irritação do comentário dela me fez esquecer da minha melancolia...

Yuragi conseguiu se livrar do braço de Akakyo e o mordeu, fazendo ele soltar um grito mal contido. Osakura caiu em gargalhada, e eu não pude evitar sorrir.

E então eu ri.

Toda a angústia, medo e insegurança que eu sentia foram embora com aquele meu riso. Os três pararam com a cena para me ver rir, o que levou um tempo para acabar. Eu enxuguei as lágrimas que escapavam meus olhos e dei um largo sorriso.

— E então, vai nos apresentar?

Eu sorri para a ruivinha.

— Sim.

Caminhamos lentamente até a porta do quarto de Shizuka. Eu entrei primeiro. Ela olhou pra mim como quem perguntasse o que estava acontecendo. Eu entrei e fiquei ao lado dela, olhando para o grupo na frente da porta, convidando-os a entrar. Shizuka ficou bem surpresa quando o grupo de rostos corados entrou no quarto dela. Ela virou o rosto na minha direção, e eu apenas sorri.

— Bom, esse é o pessoal.

— Prazer, eu me chamo Nekogami Yuragi.

— Eu sou o irmão dela, Akakyo.

— Eu sou Osakura Kaioshi! Você é muito bonita!

Shizuka corou, mas seus olhos estavam brilhando. Ela olhou pra mim profundamente. Por algum motivo, eu podia ver que ela estava muito feliz. Incrivelmente feliz. Eu olhei pra eles.

— Pessoal, essa é a Shizuka. Minha linda irmã mais nova.


. . .



Colocamos Shizuka na cadeira de rodas. Agora ela estava no mesmo nível que nós, sentada.

— Ei, Shizuka-chan, como é morar com o Makoto?

— Oh, por que você está tão interessada, Yuragi? Pensando em propor?

A cotovelada que Osakura recebeu quase o fez regurgitar suas refeições do dia. Eu tenho certeza que ele deve ser masoquista.

— Claro que não, estúpido!

Então ela voltou seu olhar para mim.

— Então... É você quem dá banho nela e faz esse tipo de coisa?

— Bom, na verdade, sou eu sim.

— Isso está errado! Você é algum tipo de pervertido?

— Claro que não! É só que só eu posso fazer isso, não é?

— Eu tenho medo do quanto seu irmão pode negligenciar a higiene, Shizuka-chan... Bom... Está decidido! Teremos um banho de garotas hoje! Ei, Makoto, eu vou tomar banho com a Shizuka hoje!

— E-ei, eu não acho que seja uma boa ideia...

Eu me movi para tentar impedir Yuragi mas os outros dois me seguraram pelos braços.

— Hã, mas o quê? Me soltem!

Yuragi levou Shizuka, totalmente avermelhada, para dentro do banheiro na cadeira de rodas. Eu tentei desesperadamente alcança-la, mas estava preso. Um pouco antes de desaparecer da minha visão, minha irmã deu um sorriso sem graça de quem tentava me acalmar. Eu suspirei em desistência e os dois me soltaram e se entreolharam.

— Por que não damos uma volta?

Osakura propôs e Nekogami assentiu. Eu fui obrigado a concordar também, já que não planejava esperar as garotas. Nós saímos de casa e fomos andando desleixados na direção da casa dos Nekogami. No caminho conversamos sobre coisas da escola. É incrível o quanto você consegue ficar feliz quando se tem amigos por perto. Esses dois... Não, todos os amigos que fiz são muito especiais.


. . .


— Vovô, nos dê uma carona!

— Hã?

O velho olhou com uma expressão confusa. Antes que percebêssemos, estávamos numa vã velha que balançava mais que tudo. Akakyo estava na frente com o avo, num dos poucos assentos que tinha sinto, enquanto eu e Kaioshi nos apoiávamos para não voarmos longe.

— Por que t-tivemos que p-pegar essa carona?

— Ha-ha! V-ocê já v-vai ver!

Graças a deus, não demoráramos muito para chegar à minha casa. Nós três juntamos forças para abrir os fundos da vã, e o que me deparei foi com o que pareciam ser instrumentos musicais cobertos por várias lonas velhas. Os dois amigos sorriam satisfeitos e começaram a descobrir e descer tudo.

— Podemos usar sua garagem?

— Bom, claro...

Eu fui até dentro de casa e abri a garagem. Ela estava cheia de tralhas, mas tinha espaço para colocar os amplificadores e as baterias. Yuragi apareceu pela porta da frente, trazendo Shizuka, de cabelos lindamente penteados e uma combinação de roupas bem pensada. Eu fiquei um pouco envergonhado com minha falta de conhecimento de moda. Yuragi pareceu bem feliz com o que estava vendo.

— Ora, então vocês decidiram mostrar a ele?

— Hum, mostrar o que à mim, exatamente?

Kaioshi sentou-se à bateria e testou bater um pouco nos pratos e nos tambores. Akakyo ajustou o cabo do baixo que segurava e Yuragi se moveu até uma guitarra que estava encostada e ajustou sua alça acima do seu ombro. Akakyo foi quem se pronunciou, seguido de Yuragi.

— Nenhum de nós somos de um clube, mas a verdade é que queríamos revitalizar a banda da escola. Nós tocamos juntos faz um tempo, mas não te contamos isso.

— É nosso pagamento por ter nos contado aquilo. Além disso, nós queríamos mostrar nossa música à Shizuka-chan também.

Todos terminaram os ajustes. O avô dos Nekogami se encostou na frente da vã, enquanto eu ficava ali, de mãos dadas com minha irmã, na frente da garagem, esperando o show que viria.

— Essa é uma música que fizemos, ainda não temos uma letra. Mas... Nós a oferecemos a vocês! O nome dela é...

Kaioshi deu inicio às batidas das baquetas para começar a canção.

— Um, dois, três, quatro!

— Jiyuu no Tsubasa!

Asas... Da liberdade.

A canção era bem ativa e os três tocavam surpreendentemente bem juntos. Akakyo dava o suporte, enquanto Kaioshi e Yuragi se empolgavam em seus instrumentos. A música era muito envolvente e parecia penetrar cada instância do meu ser. Meus olhos e o de Shizuka brilhavam de um jeito que talvez eles nunca tivessem brilhado antes.

A música continuou.

Naquele momento, pude jurar que senti a mão de Shizuka apertando a minha. Eu olhei imediatamente para nossas mãos juntas, mas a dela estava ali, sem forças, apenas sendo segurada. Teria sido algo da minha cabeça?

A música terminou. O som da guitarra ia diminuindo aos poucos, até desaparecer. Shizuka continuou olhando boquiaberta por mais um bom tempo. Eu sorri, e os três sorriram de volta ao ter sua apresentação aprovada.

— Incrível... Realmente incrível! Vocês já tem um nome?

Akakyo coçou um pouco a cabeça, envergonhado.

— Bom, isso é a única coisa que não temos ainda. Não conseguimos pensar em nada bom. O que você acha?

— Eu...

Eu tentei buscar em mim um sentimento que pudesse se materializar no nome daquela banda... Eu fechei os olhos e pensei... E esse sentimento é...

— Rakuen...

Talvez os três não esperassem uma resposta tão depressa. Eles se olharam, e cada um repetiu o nome uma vez.

Rakuen.

Rakuen…

Rakuen.

Rakuen... É... Não poderia ser outro nome.

Afinal, não tinha outro lugar que eu me sentia naquele momento que não fosse o paraíso.

. . .

Eu ouvi uma outra voz, lá de cima.

Uma segunda voz. Uma voz que acompanhava a primeira. Ela estava ali, junto à ele.

Eu sorri.

Agora você não vai mais ficar sozinho, não é?

. . .

Chiharu - 06

Paraíso.

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