A Rosa Fantasma - Versos Imperfeitos/Planeta dos Humanos Ingratos I



A bruxa, o lobo e um mistério a ser desvendado...







Prólogo

Versos Imperfeitos


O tedioso céu azul. O sol que se põe lentamente no horizonte. O vento frio que assobia nos meus ouvidos. Meu corpo caído sobre este jardim de flores mortas. Tudo estava calmo. Tudo parecia estar em seu devido lugar, exceto ela. Meu anjo da morte.
A garota parada na minha frente é graciosa como uma princesa, independente das roupas sujas e rasgadas que ela usa. Independente da aura negra que a cerca...

◊ ◊ ◊

Faz muito frio, ou talvez seja apenas meu corpo se negando a aquecer. As pedras e galhos sobre o chão machucam meus pés descalços. Todos os meus membros praticamente imploram por alguns minutos de descanso.
Não sei ao certo como cheguei à este lugar, mas por algum motivo misterioso estou no lugar certo.
Caído na minha frente está o meu salvador. Meu cavaleiro. Seu coração havia sido perfurado. Seus olhos dourados não possuíam mais o brilho da vida.

◊ ◊ ◊

Ela não deve ter mais de 14 anos, ainda assim aqueles olhos não carregam a inocência de alguém com essa idade. Aqueles olhos já devem ter visto o pior que este mundo tem para oferecer.
Seus cabelos são longos e brancos, como as nuvens que vagam acima de mim. Sua feição transmite sua dor, seu desespero. Aquele era o rosto de alguém que perdeu tudo. O rosto de alguém que sofria em silêncio.

◊ ◊ ◊

Meu cavaleiro continua a me encarar, inerte. Suas vestes finas mostram que ele deve pertencer a uma família nobre.
Talvez este garoto tenha alguém importante para proteger. Talvez ele tenha uma casa, com uma grande família que o espera para o jantar. Eu não tenho nada disso, o que faz a existência dele ser infinitamente mais valiosa que a minha.

◊ ◊ ◊

Ao meu redor posso enxergar um líquido vermelho, que cintila graças aos raios de sol. O sangue que escapa pelo buraco no meu peito encharca completamente minhas vestes.
Se eu fosse capaz de me levantar. Se eu tivesse o poder necessário para matar aquela pessoa, eu seria capaz de descansar em paz. Mas agora... não importa. Esse será um final repleto de arrependimentos.

◊ ◊ ◊

O certo seria dar um fim ao seu sofrimento. Matá-lo seria a coisa mais gentil que eu poderia fazer para o homem que me salvou de uma vida imersa em desespero.
Mas no fim resolvi fazer a escolha mais errada de todas.
Talvez seja mesmo obra do destino ele ser encontrado por um demônio como eu. Talvez nós dois sejamos almas gêmeas, ou algo do tipo. Talvez ele seja capaz de salvar minha alma que a muito tempo já está perdida em meio à agonia.
Será que ele aceitará meu pedido egoísta?

◊ ◊ ◊

— Você abriria mão de toda a sua humanidade para realizar um desejo?
Pude ouvir uma voz claramente. Foi essa garota que falou comigo? Não sei... Mesmo a encarando, não pude ver seus lábios se moverem. Talvez eu esteja apenas delirando.
— Quanto vale a sua vida? O que você estaria disposto a dar para tê-la de volta?
Ah... Agora pude entender. Esta criança está falando diretamente na minha mente. Sua voz fraca me traz a mesma sensação de estar experimentando a polpa de uma fruta doce.
— Eu posso salvá-lo. Você só precisa fazer uma simples promessa.
Promessa?
Meus olhos, assim como o resto do meu corpo não se movem. Não sinto mais a necessidade de respirar. Estou morto. Como esta garota, não tenho mais nada a perder.
— O que preciso fazer?
Respondi em pensamento. Mesmo com minha visão embaçada, pude ver algo parecido com um sorriso se formando no rosto dela, com o interminável pôr do sol como plano de fundo.

◊ ◊ ◊

Ao ouvir sua voz notei que algo estava errado. Por que mesmo sabendo que o salvarei, não sinto o alívio que tanto desejo? Por que meu coração continua pesado? Ah... Esse sentimento em meu peito é outra coisa nova, neste dia repleto de novas experiências.
Estou com medo de que este garoto não cumpra a promessa, e me abandone como todos os outros. Estou com medo de ser traída, rejeitada.
— Você só precisa viver por mim e para mim.
Acabei dizendo com um sorriso torto no rosto.

◊ ◊ ◊

Se eu ainda possuísse a capacidade de falar, com certeza teria gargalhado.
Finalmente entendo o quanto mudei após ser traído por aquela em que eu mais confiava. Eu decaí. Meu mundo está desmoronando. Eu não posso recuar diante dessa segunda chance. Eu preciso continuar vivendo, porquê... no fim de todo amor só resta o sofrimento, o ódio. Então abrirei mão de todos os meus sentimentos. Por enquanto meu único desejo é continuar vivendo, mesmo que para isso eu tenha que fazer um pacto com o demônio.

◊ ◊ ◊

Me ajoelhei ao seu lado e toquei seu rosto gelado.
Será que existe algo especial reservado para mim no futuro? Será que eu ainda tenho alguma chance de encontrar a paz que tanto desejo? Meu próprio lugar no mundo, minha própria felicidade...
Enquanto espero pela resposta dele faço minha decisão final. Se aceitar, eu dividirei minha vida com este garoto desconhecido. Nós teremos a mesma alma, os mesmos sentimentos, as mesmas memórias, o mesmo futuro, a mesma maldição. Se negar, acabarei com seu sofrimento da forma mais gentil que eu puder, em sinal de agradecimento.
— Eu aceito.
As palavras dele vieram acompanhadas de algo que se não estou enganada chamam de felicidade. Um sentimento que eu pensava ter perdido há muito tempo. Por esse breve momento, eu pude sentir que ainda havia um futuro para mim neste planeta ingrato.

◊ ◊ ◊

Seu sorriso era lindo, fascinante, mórbido. Ela aproximou seu rosto e seus lábios tocaram os meus, fazendo com que uma energia que eu nunca havia experimentado antes percorresse meu corpo. Era triste, agonizante, e aos poucos desapareceu, enquanto era transmitido para a garota de cabelos brancos. Nesse momento eu finalmente entendi.
Era como se eu a conhecesse desde sempre. Eu possuía todas as suas lembranças, sabia tudo sobre o seu passado, sentia toda a sua angustia, toda a sua esperança. E ela consequentemente sabia tudo sobre mim.
Meu corpo possuía uma alma novamente. Uma alma que não pertencia apenas a mim. Se ela morrer, eu morrerei. Se eu morrer, ela morrerá. A partir de agora seremos apenas um...



                                                                 Ambos almejamos a felicidade.
Um desejo que não passa de uma blasfêmia.
Lutando contra as marés do tempo.
Vivendo cada dia como se fosse o último.
Como um poema, finalizado com versos imperfeitos.



Capítulo 1

Planeta Dos Humanos Ingratos Pt.1


Apesar do céu estar iluminado graças a lua cheia, a terra estava imersa nas trevas. O mundo parecia estar afundando lentamente em um mar de miasma. O vento frio soava como um canto fúnebre, misturado ao som de passos sobre as folhas secas, espalhando o medo e a agonia pela gigantesca floresta que deveria estar desabitada.
[ ... ] deixou seu corpo cair ao lado do tronco de uma árvore. Lágrimas corriam sem controle pelo seu rosto. Sua garganta queimava, seu coração batia descontroladamente, seus membros estavam pesados como rochas, sua mente perdida numa escuridão muito mais densa do que a daquela floresta.
— Não posso acreditar... Não pode ser verdade... Ele não pode ter mentido para mim durante todo esse tempo...
[ ... ] sussurrava enquanto escondia seu rosto entre os joelhos.
— Eu o farei pagar... Ele pagará por todos os seus pecados...
Após um forte sopro de vento, passos desconhecidos ecoaram. Em seguida uma risada sarcástica fez o coração de [ ... ] saltar para a garganta.
— Quem está ai?!
— Você abandonaria a sua humanidade para realizar um desejo?
Em um piscar de olhos uma mulher havia aparecido. Ela caminhava em direção à [ ... ] com um sorriso entretido no rosto.
Ela aparentava ter no máximo 19 anos de idade, possuía longos cabelos pretos como as trevas, vestia uma blusa preta sem alças e uma saia larga, que por pouco não tocava o chão. Nas suas mãos luvas roxas estendiam-se até a altura dos cotovelos. Sua feição era um completo mistério com aquele sorriso assustador que simplesmente não combinava com seu rosto de boneca.
Essa mulher ergueu um de seus braços e imediatamente pequenos fragmentos de luz que aparentavam ser vaga-lumes, uniram-se e transformaram-se em uma longa capa vermelha com capuz. Essa simples vestimenta parecia reluzir, mesmo na escuridão da noite.
—Eu ouvi seu desejo, e estou aqui para realizá-lo.
[ ... ] não conseguia se mover. Nenhuma palavra escapava pelos seus lábios trêmulos.
— Não precisa ter medo. Estou aqui por que você despertou meu interesse. Não tenho a intenção de te machucar.
— Sua fúria, sua angustia, seus desejos mais profundos trouxeram-me até aqui. Você não quer uma casa? Uma família? Você não quer... vingança?
No momento em que a mulher de cabelos pretos deu seu próximo passo, milhares de vaga-lumes cercaram suas pernas, fazendo com que ela deslizasse graciosamente pelo ar. Os vaga-lumes pareciam estar carregando-a. Aos olhos de [ ... ] ela era como um anjo negro, que estava agora a apenas um passo de distância.
— Chega dessa filantropia. Eu posso dar a você um poder capaz de reconstruir este mundo amaldiçoado por humanos ingratos, corruptos, assassinos... Ou se assim desejar, essa mesma força pode mandar tudo para o inferno.
— Qu-Quem... é você...?
A voz de [ ... ] finalmente escapou em um sussurro áspero.
— Eu? Sou apenas uma simples vendedora.
— Para que eu possa ter esse poder... O que você pede em troca?
— O mesmo de sempre. Sua alma e um pouco de diversão.
Antes que [ ... ] percebesse, suas lágrimas haviam secado. No seu rosto uma feição sombria era iluminada pela luz da lua.
— Eu quero destruir a fortuna que ele tanto preza... Eu quero acabar com tudo que ele mais ama... Você pode me conceder esse desejo?
Com um sorriso malicioso a mulher de cabelos pretos tocou o rosto de [ ... ] e prendeu suas duas mãos contra o tronco de uma árvore. Em seguida calou qualquer grito ou sussurro com um beijo, longo e profundo. [ ... ] sentia como se fosse explodir a qualquer momento mas não conseguia escapar, não queria escapar. Seu desejo de vingança era ainda mais forte que a dor agonizante.
[ ... ] não ligava para quem fosse aquela mulher. [ ... ] tinha em sua mente apenas uma palavra ecoando, de novo e de novo, como um hino sem fim. Vingança... Vingança... Vingança...
Seus lábios separaram-se. A mulher de cabelos pretos deu um sorriso entretido, ainda segurando firmemente as mãos de [ ... ].
— Então, qual é a sua resposta?
— Eu... aceito.
Barulhos de passos voltaram a ecoar sem sessar, vindos de todos os cantos da floresta. Dezenas de olhos brilhavam na escuridão em meio a vultos negros que aproximavam-se lentamente. Eram lobos, que formavam um círculo, com a mulher e [ ... ] em seu centro.
Esses lobos enfim deitaram-se.
— O que é isso?! O que está acontecendo?!
— Eles são frutos das suas orações. Você é capaz de controlá-los como desejar.
A mulher de cabelos pretos lambeu os lábios e levantou sua mão esquerda, oferecendo o capuz vermelho.
— Em alguns dias duas pessoas aparecerão. Use isto e esconda seu rosto, pois no momento em que eles descobrirem quem você é, seu fim chegará, e seu sonho nunca se tornará realidade.
[ ... ] tremeu em resposta.
— Quem são essas pessoas...?
— Os guardas do paraíso, Owen e Ellenia...
A mulher de cabelos pretos tocou os lábios de [ ... ] com seu dedo indicador, deu meia volta e retornou para a escuridão da floresta. Os vaga-lumes que a seguiam, aumentavam ainda mais a sua beleza assustadora.
— Só me faça um favor... Eu quero diversão, então mantenha-me entretida pelo maior tempo que você puder, tudo bem?
A mulher então piscou e desapareceu nas trevas.
— ...
— ...
— ...Ah... Ah... AH!!
[ ... ] caiu de joelhos, sem ar. O interior de seu corpo queimava, como se centenas de insetos estivessem destruindo seus órgãos um por um. Os ossos de seus braços torciam violentamente e consequentemente quebravam. O mesmo acontecia com o restante de seu corpo.
[ ... ] estava mudando. Suas mãos estavam deformadas, seu pescoço estava torcido de uma forma nojenta e grotesca.
[ ... ] não era mais humano.
Os lobos acompanhavam aquela mutação como cães adestrados, deitados sobre as folhas das árvores, enquanto uivavam para a lua cheia que brilhava no céu.
01
13:50 P.M – Floresta de Caaporã
Existia um caminho estreito que cortava o centro da uma gigantesca floresta. O topo das árvores tropicais pareciam tocar o céu. Suas galhas e cipós possuíam formas assustadoras mesmo com o sol brilhando no alto. O ar húmido tinha o cheiro forte de mofo e capim, e o som dos insetos só eram sobrepostos pelas vozes de duas pessoas que caminhavam lentamente pela estrada lamacenta.
Dois jovens, um homem e uma mulher.
O garoto tinha por volta de 18 anos. Suas vestes, um sobretudo, calça e chapéu eram completamente pretos. Seus cabelos também seriam se não fossem aqueles dois fios brancos que pareciam propositalmente tingidos. Sua feição era serena, seus olhos dourados mostravam um grande interesse pela floresta misteriosa a sua volta.
A garota alguns centímetros mais baixa aparentava ter 16 anos. Sua pele pálida demonstrava uma fragilidade que não combinava com sua postura. Ela usava um vestido azul escuro cheio de babados e costuras finas, que corriam até pouco abaixo de seus joelhos. Seus cabelos brancos como neve pendiam até o meio de suas costas. Sempre que pisava em uma poça de lama a garota resmungava.
— Quando você disse que iriamos viajar, não avisou que seria para o fim do mundo! Estou suja, cansada e com fome. Sem contar que estamos a mais de três horas perdidos nesta floresta idiota! Owen, seu imprestável, você deve ter estrume no lugar do cérebro para ter aceitado esse serviço!
O jovem Owen deu um sorriso cínico para a garota.
—Acredite... Ver você nesta situação deplorável realmente me deixa arrasado, mas lembre-se, foi você quem insistiu em me acompanhar, dizendo baboseiras como, ‘estou morrendo de tédio’, ‘não quer me levar por que na verdade está fugindo para algum bordel’, e blá, blá, blá. Quanto a comida, ninguém mandou você acabar com tudo que tínhamos de uma vez sem se importar com depois.
A garota de cabelos brancos grunhiu e chutou a perna esquerda de Owen, que pulou e gritou imediatamente.
— Huh!
Owen não ameaçou repreender a garota. Ele de certa forma já estava acostumado com as atitudes infantis dela.
— Por quanto tempo vai continuar parado, Owen?! Você ainda é capaz de andar, não?!
Ela continuou caminhando sem esperar por Owen, que apenas endireitou sua postura e suspirou.
— Certo, certo...
Ele levou sua mão para dentro de um dos bolsos de seu sobretudo, retirou de lá uma maça verde e a arremessou para a garota. Os olhos dela brilharam por alguns segundos, mas quase que imediatamente voltaram ao normal. A garota claramente se negava a agradecer.
— Não pense que poderá me comprar com uma simples fruta, Owen! Eu valho muito mais que isso!
Owen deu uma risada breve, perdendo a paciência.
— Seu veneno continua doce como sempre, Ellen. E acho que esse é o momento mais adequado para acrescentar o seguinte fato: sua roupa extravagante e esse clima quente definitivamente não combinam. Você está fedendo.
Ellen corou levemente, franziu o cenho e dessa vez chutou a perna direita de Owen. Diferente de antes ele não conseguiu segurar sua onda de raiva.
— BRUXA! Dá para parar de me bater por qualquer motivo?!
— NÃO! Isso vai acontecer toda vez que você abrir a boca para falar alguma besteira. E já avisarei com antecedência, na próxima garanto que irei acertar um lugar que fará você ficar agonizando no chão por um bom tempo!
Owen suspirou novamente, e mancando continuou seguindo a garota.
Antes mesmo de Ellen dar a primeira mordida na maçã, um par de portões de madeira tomou forma por trás das copas das árvores. Esses portões possuíam quase 10 metros de altura, cercados por muralhas de pedra do mesmo tamanho.
Owen assobiou.
— Uma fortaleza em plena Aliança Sul-americana... Como esperado de uma cidade construída por imigrantes, sempre tão exagerados...
Diferente das outras grandes cidades, não haviam homens guardando o lado de fora, o que deixou Ellen intrigada.
— Estranho. Uma cidade deste porte deveria estar cheio de pessoas, mas ao que parece ninguém vive aqui há séculos. Eu não os culpo, afinal não existe alguém capaz de viver por muito tempo num fim de mundo como este.
— Se tudo o que dizia naquela carta for verdade... Bem, eu já suspeitava que as coisas estariam feias por aqui.
— Feias o suficiente para contratarem um mercenário de terceira como você, Owen.
— É em momentos como esse que me pergunto o motivo para você estar sempre ao meu lado, bruxa.
Owen deu um sorriso zombeteiro e prosseguiu.
— Deixando isso de lado, como vamos entrar neste lugar?
Os portões não possuíam um batedor, ou qualquer coisa que pudesse ajudar Owen a se comunicar com qualquer pessoa que pudesse estar do outro lado da muralha.
— OLÁ?! CIDADE DE JOTHENVILLE?! ALGUÉM VIVO?!
Não houve uma resposta imediata. Apenas quando Owen ameaçou gritar pela segunda vez foi que alguém do lado de dentro perguntou com um tom incerto.
— Quem está ai?!
— Owen e Ellenia! Fomos enviados pela Legião de Mahyra!
Imediatamente outras vozes ecoaram. Sussurros, cochichos, alguns animados, outros desconfiados.
— A legião! Abram os portões! Abram os portões!
As trancas eram retiradas vagarosamente. Apenas 10 minutos depois os portões foram abertos.
O lado de dentro podia ser comparado há um campo de batalha após uma guerra violenta. A cena era tão avassaladora que Ellen sentiu uma pontada de angústia em se coração. Jothenville estava completamente destruída, e diferente do que ela imaginava, uma multidão já os esperavam na entrada. Homens, mulheres e crianças, sujos e vestidos com trapos. Claramente fazia muito tempo desde a última vez que alguém cruzara aqueles portões.
Owen encarava aqueles rostos um por um. No fundo daqueles olhares cansados e desconfiados, ele podia enxergar um pequeno traço de esperança.
Uma criança atravessou a multidão aos empurrões. Quando seus pequenos olhos encontraram Ellen e Owen, um sorriso iluminado tomou seu rosto. Era como se aquela criança estivesse na frente de seus heróis favoritos. Ellen se aproximou da criança e bagunçou seus cabelos, em seguida entregou a maçã que recebera de Owen.
— Obrigado senhorita!
A vontade de ajudar aquelas pessoas começou a queimar progressivamente na mente de Ellen. Ela sorriu e voltou-se para Owen.
— Por quanto tempo você continuará parado feito um poste, Owen? Vamos acabar logo com isso para que eu possa tomar um banho!
Owen sorriu em resposta a atitude peculiar de sua parceira. Ele então dirigiu-se até um dos guardas que os observavam.
— Onde podemos encontrar o responsável por esta cidade?
Mas antes que o guarda pudesse responder, Ellen se antecipou.
— Já posso imaginar onde ele pode estar.
Ellen encarou a grande construção que se sobrepunha as casas humildes. Aquela única residência era equivalente a no mínimo vinte casas ao seu redor. Mesmo estando a mais de um quilômetro e meio de distância, o casarão era visível.
Por algum motivo o sorriso de Owen se alargou ao testemunhar a clara diferença social existente numa cidade que aparentemente deveria ser rica e próspera.
— As engrenagens giram sempre da mesma maneira, não é mesmo, Ellen? O rei e seus súditos.
02
14:15 P.M – Casarão de Marcos
A velha carroça parou em frente à porta de entrada daquele nobre casarão. Ao saltar para fora, Ellen observou com curiosidade a quantidade de guardas que vigiavam o local. Assim que bateu na porta, uma mulher de meia-idade os atendeu. Apesar de ser apenas uma serva, ela estava muito bem vestida. Seus cabelos castanho escuro possuíam alguns fios brancos. Seu rosto enrugado e suas olheiras entregavam seu cansaço. Ela curvou-se e segurou a ponta de sua saia, em reverência.
— Em que posso servi-los?
— Estamos aqui para ver o senhor Marcos Arthmael. Fomos enviados pela Legião de Mahyra a fim de confirmar o conteúdo da carta que ele supostamente nos enviou.
Os olhos preto acinzentados da serva arregalaram-se por um breve momento. Ela hesitou antes de convidar Owen e Ellen para entrar.
— Por favor, sigam-me.
O casarão de Marcos Arthmael dava a impressão de ser ainda maior por dentro. Owen e Ellen seguiam a empregada, cruzando a enorme sala de estar até chegarem a duas escadas. Uma direcionada ao sótão, e outra ao segundo andar. Owen encarava maravilhado os gigantescos quadros nas paredes e as reluzentes lamparinas de cristal. Ele podia jurar que essa casa possuía mais de trinta cômodos, então era intrigante o fato de um lugar tão grande estar tão vazio. A cada poucos passos a serva direcionava olhares rápidos para Ellen, que permanecia em silêncio com uma feição entediada em seu rosto.
Os três subiram as escadas e atravessaram um longo e iluminado corredor até pararem de frente para uma enorme porta de madeira maciça, que possuía desenhos dourados de duas assas entalhadas. Um símbolo geralmente usado por cientistas, ou soldados formados pela igreja.
— Meu amo, dois jovens estão aqui para vê-lo. Eles dizem serem enviados da Legião de Mahyra.
Passos apressados soram de dentro da sala, e poucos segundos depois a porta foi aberta ferozmente. Um homem de aproximadamente 40 anos trajando roupas e assessórios caros apareceu. Sua cabeça possuía poucos fios dourados, e seu corpo não estava em forma. Os olhos dele brilharam assim que avistou os recém chegados.
— Ooh, oh! É um prazer conhecê-lo, senhor...?
Ele correu para cima de Owen e segurou sua mão com força, sacudindo-a várias vezes.
— Owen...
— Oh sim! E quem é a dama ao seu lado?
Os olhos de Marcos pararam sobre Ellen, que permanecia emburrada.
— Essa é Ellenia Gweneth. Minha...
Owen pensou por um momento o melhor [e o que deixaria Ellen menos irritada] modo de apresentá-la.
— ...Assistente.
Marcos estendeu sua mão direita na direção da garota de cabelos brancos, mas ela o ignorou completamente. Poucos segundos depois deixou sua mão cair com uma expressão desconcertante no rosto.
— Eh... Bem, entrem. Temos muito a discutir.
Marcos acenou com a cabeça na direção da empregada, que deu meia volta e começou a caminhar rumo as escadas.
Owen e Marcos entraram na sala primeiramente, mas Ellen ficou parada do lado de fora por mais alguns segundos encarando as costas da empregada. Desde que eles entraram nessa casa, ela tinha a forte sensação de estar sendo vigiada por uma pessoa oculta.
A sala de Marcos era ampla e clara. Provavelmente aquele lugar por si só já valeria por uma casa inteira. No centro havia uma enorme mesa, com vários livros grossos espalhados por cima. Nas paredes laterais haviam estantes igualmente carregadas de livros empoeirados. Em um canto da sala havia uma pequena mesa de chá, com quatro poltronas em volta. No chão estendia-se um enorme carpete feito de pelos de animal. Owen permaneceu de pé, enquanto Ellen sentou na primeira poltrona que encontrou.
— Então Sr. Owen, creio que você já esteja a par da situação.
— Na verdade a carta que o senhor enviou para a legião dava a entender que Jothenville estava tendo problemas com ataques de lobos, nada mais que isso.
Owen ficou ao lado de Ellen, que ainda permanecia desconfortável, como um pequeno animal se encolhendo para enganar um predador.
— Para falar a verdade ainda estou tentando entender o motivo para o senhor ter contatado a legião, afinal, situações desse tipo não fazem parte da nossa jurisdição, sem contar o conteúdo suspeito da sua mensagem que poderia facilmente ser confundida com um trote. Estou aqui hoje apenas por que fiquei curioso sobre o mistério por trás daquela carta. Não pode ser algo tão simplista como uma praga de animais selvagens, não é?
Owen encarou Marcos com um olhar firme.
— O senhor fez uma viagem de 6 horas movido apenas por curiosidade? Sr. Owen, você é uma pessoa interessante, e, está correto. Não é apenas uma praga de lobos. O verdadeiro problema é que todos os habitantes de Jothenville estão presos dentro desta cidade.
Marcos ficou em silêncio por um breve momento, enquanto coçava preguiçosamente seu queixo mal barbeado.
— Esta cidade depende inteiramente da importação de materiais e alimentos vindos de cidades produtoras. Como o senhor deve saber, Jothenville não possui espaço suficiente para cultivar o alimento necessário para todos os habitantes consumirem, então acabamos dependentes dessas importações. Sem isso minha cidade não pode sobreviver.
Nesse momento Owen já podia deduzir onde Marcos queria chegar. A cidade de Jothenville era conhecida por seus valiosos criadouros de cavalos de guerra, e sua renda vinha quase que inteiramente do dinheiro recebido por cada cavalo vendido para a República do Rio [Capital da Aliança Sul-americana]. E por ser uma metrópole, não sobravam áreas para grandes plantações.
— ...Onde quero chegar é que dezenas, talvez centenas de lobos estão impedindo a chegada de mantimentos. Todos os comboios de alimentos que os produtores nos enviam são atacados e completamente destruídos antes de chegarem a nós.
— Destruídos?
Owen encarou Marcos, incrédulo.
— Isso é no mínimo antinatural. Lobos atacam para se alimentarem, ou proteger seus territórios. Eles não atacariam apenas para destruir. E mesmo que seja para proteger território essa história ainda me soa de uma forma estranha. Sr. Marcos, esses lobos já chegaram a atacar alguma pessoa que estava presente nesses comboios?
Marcos coçou o queixo novamente enquanto pensava.
— Não. Até agora não teve ninguém que chegou a ser ferido por um lobo.
— Então proteção de território é mesmo uma hipótese descartada...
— Ah! E não é só isso! Há algo ainda mais estranho acontecendo!
Owen direcionou toda a sua atenção para Marcos, sem tentar esconder sua curiosidade.
— Em alguns ataques, incluindo o primeiro, alguns guardas e habitantes relataram ter visto uma pessoa... com um capuz vermelho cobrindo o rosto.
— Um capuz...?
— Infelizmente nenhum deles conseguiu ver o rosto da tal pessoa. Dizem por ai que ele ou ela estava controlando a alcateia, como se fosse um tipo de lobo alfa! Enfim, no primeiro ataque essa pessoa de capuz ameaçou matar qualquer um que saísse para fora dos portões. É claro, no início tentamos montar um exército para sair e exterminar os lobos, mas sempre acabamos encurralados e obrigados a recuar por causa da quantidade absurda de animais. Após várias tentativas apenas o medo crescente foi o suficiente para impedir que qualquer um tentasse encarar a Floresta de Caaporã.
Os olhos do Owen estavam arregalados de tanto entusiasmo. Um sorriso tomando seu rosto.
— Os ataques dos lobos ocorrem a qualquer hora do dia e da noite?
— Sim... Já tentamos sair em vários horários diferentes.
— Há quanto tempo esses ataques começaram?
— Hoje faz exatamente uma semana.
— Sete dias...
Owen agora entendia boa parte do que estava ocorrendo, e o porquê de um pedido tão importante chegar a ele por meio de um pombo-correio em vez de um mensageiro. Ninguém na Legião de Mahyra teve interesse em fazer uma viagem tão longa e cansativa para investigar tal mensagem, mas Owen acabou ficando curioso com o assunto tratado na carta. Lobos. A população de uma das cidades mais ricas do Sudeste trancafiada dentro de sua própria fortaleza. Uma pessoa misteriosa com poderes impossíveis...
Esse mistério parecia excitante demais, mesmo com o risco de voltar para casa com as mãos abanando por culpa de um possível trote.
— Bom, esse parece ser exatamente meu tipo favorito de trabalho Sr. Marcos. Então o aceitarei.
Marcos deu um sorriso breve, mas Owen sentiu que era um sorriso forçado porém.
— Obrigado Sr. Owen. Se precisar de algo é só falar comigo que providenciarei imediatamente. Quanto mais rápido nos livrarmos dessa peste, mais rápido tudo voltará ao normal.
— Normal?!
Ellen, que até então havia permanecido calada, grunhiu e levantou da poltrona com uma expressão de fúria em seu rosto.
— Quando você diz ‘normal’, você se refere ao dinheiro que costuma cair no seu bolso, não é?! O conteúdo do seu cofre vai encher novamente e voltará ao ‘normal’, não é isso?!
Owen colocou uma mão em frente ao rosto e resmungou baixo. Ele já esperava que uma situação como essa viesse a acontecer. Principalmente se tratando de Ellenia e sua personalidade incontrolável.
— Se não há comida sua cidade entra em colapso, e como consequência acaba perdendo seu prestigio! Com poucas pessoas comprando seus animais o prejuízo financeiro torna-se imensurável. A falta de dinheiro acaba destruindo tudo, inclusive o recheio do seu querido bolso!
Ellen deu uma risada curta.
— E pensar que apenas uma semana foi o suficiente para deixar você desesperado.
Ellen encarou Marcos, que estava claramente irritado com as acusações.
— Até agora, em nenhum momento vi você mostrar preocupação com a população da sua cidade. Que segue você! Que morre de FOME, enquanto você se preocupa apenas com o dinheiro que está perdendo!
— Ellen...
Owen tentou interrompê-la, mas Ellen não se permitiu censurar.
— CALADO! Eu ainda não acabei.
Owen apenas deu uma risada e levantou os dois braços em sinal de desistência. Às vezes ele gostava quando Ellen gritava para todo o mundo o que ele estava pensando, mas não conseguia expressar.
— Marcos... Se eu fosse você, permaneceria bem longe dos lobos enquanto eu estiver por perto. Pois pode apostar que serei a primeira pessoa a te usar como isca viva!
Ellen deu as costas e saiu, fechando a porta com um baque. Owen suspirou e sorriu.
— Senhor, perdoe a atitude impulsiva da minha companheira. Ela é meio... incompreensível às vezes.
Owen deu um sorriso gentil.
— Enfim, voltando ao assunto, tenho um pedido a fazer. Eu preciso que o senhor encomende alimentos e peça para entregarem o mais rápido possível. Preciso ver o que está acontecendo com meus próprios olhos.
— Oh, certo! Farei isso. Até o nascer do dia eles virão.
Owen retirou seu chapéu e o segurou em frente ao peito enquanto fazia uma breve reverência.
— Estarei esperando. Com sua licença.
Owen dirigiu-se a porta, mas antes de sair encarou Marcos uma última vez.
— Só mais uma coisa senhor. Eu concordo com minha companheira. Você é um idiota.
Com um sorriso malicioso Owen saiu, deixando Marcos boquiaberto para trás.
03
14:22 P.M – Casarão de Marcos
Ellen desceu as escadas enquanto resmungava baixo. Situações como essa realmente mexiam com seu consciente, e por muitas vezes sua falta de controle chegava a ser um incômodo. Ainda assim após colocar tudo que pensava para fora, Ellen sempre se sentia aliviada.
Pessoas como Marcos existem em todos os cantos da terra, e Ellen tinha conhecimento da quantidade absurda de dinheiro que eles ganhavam em cima da população de suas cidades, e o modo como eles reagem ao perceberem o risco de acabarem falidos. O desespero desse tipo de pessoa influência diretamente a vida de seus dependentes. Ellen nesse momento era capaz de deduzir tudo o que havia acontecido em Jothenville nessa semana sem alimentos.
Para amenizar a perda de lucro, Marcos aumentou os impostos dos mercadores, que consequentemente aumentaram o preço dos poucos alimentos. Ao ver que não seria o suficiente, ele também aumentou os impostos sobre as moradias, e como essas pobres pessoas não possuíam dinheiro suficiente para bancar o alto custo de vida, acabaram expulsos de suas próprias casas. Jogados à mercê da sorte. Todas aquelas pessoas que ela viu logo após entrar na cidade não possuíam mais um lar e não podiam fugir para nenhum outro lugar, como pássaros presos numa gaiola.
A parte final e óbvia dessa história é a revolta da população contra seu governante.
Ellen agora compreendia o porquê de toda aquela destruição do lado de fora. A população resolveu lutar contra a ditadura de Marcos, e começaram a pressioná-lo. Uma revolução seria a forma mais adequada de se referir a essa situação. Como não podia conter a fúria de seu povo sozinho, Marcos resolveu contatar a Legião de Mahyra, conhecida por possuir os melhores soldados do Sudeste, e um dos mais conceituados exércitos de toda a Aliança Sul-americana.
— Ele deve ter prometido para todo esse povo que nós resolveríamos os problemas com os lobos...
Owen e Ellen tornaram-se um tipo de anestesia para acalmar a fúria da população, o que também explicava a enorme quantidade de soldados guardando o lado de fora do casarão. Eles estavam de guarda para proteger Marcos de seu próprio povo.
Ellen caminhou pela grande sala de estar e parou na frente de uma parede que continha dezenas de retratos de tamanhos diferentes. Boa parte deles eram quadros antigos e mofados, contendo homens e mulheres com expressões e poses parecidas. Esse casarão apesar de gigantesco não aparentava ter muitas pessoas morando, então Ellen supôs que eram parentes distantes, ou falecidos. Já os retratos mais novos continham as mesmas pessoas. Marcos ao lado de uma garota de cabelos dourados e olhos azuis. O retrato mais novo mostrava Marcos usando um sobretudo branco, ao lado daquela mesma garota, já crescida.
Ao encarar essa última foto uma pergunta surgiu na mente de Ellen.
— Onde está a mãe da garota? Bem, acho que não importa.
Ellen então atravessou a sala de estar e saiu para o lado de fora da casa. O brilho do sol a cegou por alguns segundos.
— Esse lugar fede a estrume... Um completo fim de mundo...
Ela suspirou e encarou seus arredores. Um jardim bem cuidado, uma fonte de água ao longe, alguns lampiões espalhados por locais estratégicos.
— Seria preciso no mínimo vinte pessoas para cuidar de tudo isso, não?
Só então Ellen se deu conta de algo importante. O jardim estava completamente vazio. Aqueles guardas que um tempo atrás estavam vigiando o casarão haviam desaparecido. Assim que ela pensou em retornar para dentro da casa, sons de passos ecoaram.
Ellen não teve tempo nem de virar o rosto antes de um braço segurar seu pescoço, e um pedaço de pano húmido ser pressionado contra seu nariz. Junto ao odor forte o mundo imediatamente começou a girar.
— Clo...ro...fórmio...?
A última coisa que Ellen viu antes de desmaiar foram o calçado da pessoa que a atacou. Um par de sapatilhas, geralmente usado por empregadas.

◊ ◊ ◊

Ellen despertou. Sua visão estava embaçada. Sua cabeça doía.           
— Ai... Ai...
Ela estava caída sobre o chão de terra batida, dentro de uma sala minúscula que era iluminada por uma única vela. Suas mãos e pernas estavam presas por cordas. Assim que ela levantou seu rosto uma ânsia de vômito embrulhou seu estômago, por isso precisou de vários segundos para retomar o controle sobre seu corpo.
Ellen revirou-se no chão até conseguir ficar sentada. Assim que olhou na direção da porta encontrou uma pessoa vestindo uma capa com um capuz vermelho sobre sua cabeça. Ellen esperava descobrir quem era a pessoa por trás do capuz, mas no lugar do rosto havia uma máscara de cera, com vários desenhos tribais entalhados. Nem mesmo sua boca ficava a mostra.
— Finalmente nos encontramos chapeuzinho.
Ellen deu uma risada fraca.
— Ou talvez você seja o lobo mau, não é mesmo?
Irritada com o silêncio da pessoa de capuz, Ellen prosseguiu.
— Então? O que quer de mim? Tenho certeza que você não me trouxe até aqui com o intuito de admirar a minha beleza, não é?
— Você e seu amigo devem sair desta cidade ainda hoje. Esqueçam o que está acontecendo aqui. Vão embora e nunca mais voltem.
Seu tom de voz era fraco e apático, claramente forçado, como alguém falando com um pedaço de pano na boca. Ellen observou cuidadosamente aquela pessoa de baixo para cima, mas nada era muito visível graças a escuridão predominante naquela pequena sala. Até mesmo a cor dos olhos da pessoa de capuz era imperceptível.
Ellen também revirou aquela sala com seu olhar, e encontrou seus únicos pertences, um pequeno saco de pano que ela carregava dentro do decote de seu vestido e um objeto em metal retangular, que antes estava preso em uma bainha na sua perna. Era óbvio que ela tinha sido revistada enquanto estava desacordada.
Frustrada com tudo isso Ellen apenas sorriu.
— Sabe, eu adoraria estar em casa nesse momento chapeuzinho. Deitada na minha cama macia, após tomar um longo banho em água quente, apreciando um delicioso jantar. Mas devo deixar claro uma coisa. O idiota do meu parceiro não aceitará essa sua proposta generosa.
E com uma breve risada continuou.
— E bem... Pode ser desagradável admitir, mas... eu não consigo abandonar ele tão facilmente assim.
A pessoa de capuz tremeu de raiva.
— Se vocês continuarem nesta cidade, o único futuro que os esperam é a morte.
— Todos morrem algum dia, não? Enfim! Chega desse papo furado. Não estamos aqui para discutir sobre os mistérios da vida e da morte.
Um sorriso encantador tomou o rosto de Ellen. Um sorriso que poderia até ser considerado normal se não estivesse no rosto de alguém que está cara a cara com a morte. 
— Se estamos procurando assuntos para discutir que tal esses? Por que ainda estou respirando? Você me sequestrou apenas para ter essa conversa amigável comigo? Apenas para me fazer um ultimato? Não, espera! Esqueça essas perguntas. Tem outra coisa sobre a qual estou ainda mais curiosa... O que seria você? Uma mutação? Uma aberração da natureza? Uma... experiência...?
A reação à palavra ‘experiência’ foi mínima. A mão esquerda da pessoa de capuz vermelho tremeu por uma fração de segundos, mas Ellen notou aquilo imediatamente.
— Pelo jeito estou no caminho certo. Vamos agora para as respostas das minhas perguntas anteriores. Você não me matou por que na verdade não gosta de derramar sangue. O que me faz pensar assim? O fato de nenhum humano ter sido ferido durante seus ataques aos comboios de alimentos...
Uma risada serena escapou pelos lábios de Ellen ao notar a perplexidade da pessoa de capuz.
— Para falar a verdade não estou interessada em saber como você ganhou esses poderes, mas sim no por que de você querer destruir toda essa cidade mesmo contrariando sua regra de ‘não ferir as pessoas’. Não sei se você tem consciência disso, mas uma hora ou outra todos esses homens, mulheres e crianças vão inevitavelmente morrer de fome. Você não vai matar apenas uma pessoa...
Ellen deliciava cada palavra que escapava pela sua boca.
— Você matará milhares...
Um som agudo ecoou pela pequena sala, e no segundo seguinte Ellen desabou no chão. Ela recebera um tapa forte o suficiente para fazer sua visão ofuscar por um breve momento. A pessoa de capuz vermelho deu três passos para traz, tremendo, enquanto segurava sua mão direita, como se não estivesse acreditando no que acabara de fazer.
Ellen levantou seu rosto lentamente. Ela não sentia medo. Na verdade seus olhos estavam brilhando ainda mais de tanta excitação.
— ...Ai... Ai... Acho que eu estava errada... Você não quer destruir essa cidade. Então... a única opção que resta é: você está atrás de Marcos Arthmael...
Ellen encarou a pessoa de capuz novamente e começou a rir sem controle. Tanto que seus olhos lacrimejavam.
— Hahahahahaha! Finalmente descobri o motivo para você estar fazendo tudo isso! Na verdade, desde o início sempre existiu apenas duas respostas óbvias na minha cabeça, afinal, humanos só machucam uns aos outros por ódio... ou por amor...
A pessoa de capuz vermelho deu dois passos rápidos na direção de Ellen, mas parou bruscamente ao perceber que iria agredir a garota indefesa novamente. E para evitar que tal coisa voltasse a acontecer, a pessoa de capuz começou a recuar lentamente.
— Você escolheu a opção errada garota, e como consequência apodrecerá neste lugar, onde servirá de alimento para os ratos!
A pessoa de capuz deu meia volta e foi embora. O som seco da porta sendo trancada fez Ellen se arrepiar.
Mas já era tarde demais. Ela já havia caído na armadilha de Ellen. Nesse breve momento de fúria a pessoa de capuz vermelho acabou deixando escapar sua verdadeira voz. Uma voz que Ellen havia ouvido pouco tempo antes.
— Tsh! Quem essa idiota pensa que é?
Ellen se revirou no chão até conseguir sentar novamente. Ao reparar o estado em que estava seu vestido ela grunhiu de raiva.
— Maldição! Agora estou ainda mais suja! ONDE DIABOS ESTÁ AQUELE CABEÇA DE ATUM QUANDO EU MAIS PRECISO?! O QUÃO INÚTIL VOCÊ AINDA PODE SER OWEN?!
Em resposta a menção do peixe seu estômago roncou, e ela suspirou.
Ellen levantou seus pés pouco acima do chão, e os balançou até que uma pequena navalha presa na sola de uma de suas sapatilhas caiu. Ela se arrastou e ficou de costas para a navalha. Assim que a pegou cortou as cordas que prendiam suas mãos, e em seguida a corda que prendia seus pés.
— Muito fácil. Agora a porta.
A primeira coisa que Ellen fez foi pegar seu equipamento. Ela levantou sua saia e prendeu aquele objeto retangular numa bainha pouco acima de seu joelho. Em seguida pegou aquele pequeno saco de pano e o abriu. Dentro dele haviam pequenas navalhas e lixas de formatos diferentes.
Com um sorriso no rosto ela pegou dois dos objetos e os direcionaram para a fechadura enferrujada da porta de madeira.

***


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