O primeiro confronto, o cemitério e o genocídio...
Planeta Dos Humanos Ingratos Pt.3
08
15:49 P.M – Residência de Guilherme
— Acho que foi proveitoso deixar vocês a sós.
Pouco tempo após Guilherme voltar para dentro
de sua casa, Aria atravessou a varanda e ficou ao lado de Owen.
— Então você estava ouvindo?
— Eu e toda a vizinhança, afinal vocês
estavam gritando.
Owen sorriu.
— Há um tempo atrás você havia me perguntado
que tipo de pessoa eu sou. Sua pergunta foi respondida?
— Hum, acho que pude entender melhor como o
senhor pensa. Estou impressionada principalmente com seu autocontrole, que é
algo admirável considerando todos os tipos de situações que você deve
enfrentar. Não sei se conseguiria permanecer tão calma num lugar onde todos me
odeiam.
— Se alguém me perguntasse nesse momento por
que continuo suportando todos esses sentimentos negativos a meu respeito, eu
não saberia como responder. Para mim cada dia é um novo dia, como a página em
branco que vem logo após uma rabiscada. Não me prender ao passado é o que me
mantem ligado à Legião. O que você chama de ‘calma’ eu chamo de ‘dar um
passo de cada vez’.
— Ouvi falar que todos aqueles que entram
para a Legião sonham em ser heróis. Esse é o seu caso?
— No início, era. Mas depois acabou se
tornando um motivo bem mais complicado.
Aria olhou para o céu, perdida em
pensamentos.
— Também não sei o que estou fazendo em
Jothenville. Eu... não sinto que aqui seja minha ‘casa’, mas ao mesmo tempo não tenho coragem para sair em busca do
meu verdadeiro lar.
Owen sorriu gentilmente.
— Não sou a pessoa mais indicada para dar
conselhos, mas há algo em que acredito firmemente e queria que você tivesse
consciência disso. Todos que caminham por este planeta possuem ao menos um ‘lugar especial’, e cedo ou tarde acabam
encontrando-o. Até alguém defeituoso como eu possuí um lugar assim, por isso
tenho certeza que você encontrará seu verdadeiro lar, um dia.
— Defeituoso...?
Aria sussurrou para si mesma e sorriu.
— Onde fica seu lugar especial, Owen?
— Fica na colina com mais árvores de toda a
República do Rio, próximo a um pequeno lago que tende a ficar avermelhado
durante o entardecer. O único lugar em que posso dormir sem ter pesadelos.
Aria estava prestes a questioná-lo quando
seus olhos encontraram a mão direita dele.
— Sangue... Owen... Sua mão está sangrando!
Owen imediatamente levantou a palma de sua
mão. Gotas de sangue caiam sobre o piso da varanda. Aria arregalou os olhos ao
perceber que havia uma mensagem gravada na pele dele.
‘Você está na
superfície? OBJC’
— Sua mão não estava assim há alguns segundos
atrás... Como...?!
Aria sussurrou, incrédula. Owen fechou os
olhos e pensou por um breve momento.
— Superfície?
Ellen, o que você quer dizer com isso?
— Ellen? A pessoa que veio com você da
República do Rio? O que significa OBJC?
— ...Significa que ‘o baile já começou’...
Owen nem ao menos parou para estancar o
sangue que sujava seu sobretudo. Levou sua mão esquerda para dentro do bolso de
sua calça e retirou de lá uma moeda de prata, colocando-a imediatamente de pé
sobre o chão.
— Está ouvindo isso...?
— O quê?
Três segundos depois a moeda pulou alguns
milímetros e caiu.
— Um pequeno terremoto.
Owen começou a se mover, saindo das terras de
Guilherme em direção à estrada. Sem entender o que estava acontecendo, Aria o
seguiu de perto.
— Mais uma vez! Os tremores estão ficando
mais fortes.
Um minuto depois os dois já estavam em uma
área aberta, próximo à divisa de Jothenville com a Floresta de Caaporã.
— O epicentro é aqui!
Sem se importar com a lama e a sujeira, Owen
ficou de joelhos e aproximou seu ouvido do chão.
— Em que tipo de encrenca você se meteu dessa
vez, Ellen?
— ‘Você
está na superfície?’ Espera um pouco! Isso quer dizer que ela está debaixo
da terra?!
Aria estava em pânico. Owen deu um sorriso
torto e leu a mensagem na palma de sua mão mais uma vez.
— Aparentemente está acontecendo uma guerra
aqui em baixo... Aaaahhh! Por que você não é capaz de escrever nem mesmo um
recado direito?! Não sou capaz de adivinhar seus pensamentos!
Owen começou a caminhar em círculos enquanto
olhava para o chão, murmurando e roendo a unha de seu polegar, uma mania que
deixava escapar sempre que ficava ansioso.
— Se eu estivesse preso debaixo da terra,
como poderia escapar? E se eu não
pudesse escapar? Conhecendo Ellenia, ela apenas explodiria tudo e abriria uma
saída, mas considerando o final dessa mensagem suspeita, devo presumir que ela
esteja enfrentando algum inimigo que a impede de escapar...
Owen arregalou os olhos como se tivesse
decifrado o mistério por trás daquelas poucas letras e encarou Aria, que
permanecia atônita.
— Aria, acho melhor você não presenciar o que
farei agora. Não será nada agradável.
— O... que você fará?
Owen pegou seu Sensorium e expandiu dez
centímetros de sua lâmina.
— Aconselho que feche os olhos.
— Espere! Não faça isso!!!
Mas já era tarde. Owen cortou a palma de sua
mão direita [onde estava gravada a
mensagem de Ellen] profundamente, cerrando os dentes para não deixar
escapar um grito de dor. Sangue jorrou sem controle pelo chão. Aria gritou e
deu três passos para trás, atordoada.
— Ah... Ai está você...
O sangue espalhado pelo chão começou a correr
como se tivesse vontade própria, desenhando um largo círculo com dezenas de
símbolos dentro. Menos de um minuto depois aquele círculo feito de sangue
estava completo, e uma poderosa luz branca jorrou em direção ao céu.
Aria estava paralisada de medo, mas ao mesmo
tempo admirada.
Partindo do centro do círculo, o chão começou
a derreter, como uma esponja mergulhada em ácido sulfúrico. A corrosão começou
a criar um poço, que descia rapidamente em direção ao subsolo. Owen guardou seu
Sensorium e segurou a mão esquerda de Aria, puxando-a para longe da fissura.
— R-Rápido, precisamos estancar o
sangramento!
Aria tinha certeza que Owen havia cortado
várias veias importantes de sua mão, causando aquela grave hemorragia que se
não fosse tratada rapidamente poderia levá-lo a um choque hipovolêmico. Mas
assim que pegou a mão dele, Aria arregalou os olhos, perplexa.
— Desapareceu... Nada da mensagem ou do
corte... Nem mesmo um arranhão...
Restava apenas uma quantidade absurda de
sangue que encharcava sua manga.
— ...O que você é...?
◊
◊ ◊
As garras da
criatura avançaram em direção ao pescoço de Ellen, que jogou o corpo para trás,
desviando no último momento. Sem dar espaço para um segundo ataque, Ellen girou
seu chicote e o lançou contra o rosto do mutante. Um golpe tão violento que fez
a criatura cambalear para o lado. Em seguida lançou seu chicote uma segunda
vez, enrolando-o no pescoço do monstro, e o puxou, derrubando-o sobre um
amontoado de caixas, fazendo seus conteúdos voarem por todos os lados.
— Ah... Você
não é daqueles que desistem após a primeira rejeição, não é?
Ellen recuou
até ser barrada por uma parede. O mutante levantou, rugiu e avançou, lançando
um golpe circular visando o rosto de Ellen, que desviou facilmente. As garras
da criatura acertaram a parede, arrancando um grande pedaço da estrutura. Ellen
deu três passos rápidos para o lado e lançou seu chicote, enrolando-o na perna
do monstro, e o derrubou novamente.
Dessa vez o
mutante acabou batendo a cabeça com força no chão, e não levantou mais.
— Acabou...?
Ellen soltou
o ar preso em seus pulmões e encarou o sangue que escorria por entre os dedos
de sua mão esquerda. Sangue que não vinha dos ferimentos que ela havia feito
com sua pequena navalha pouco tempo antes, e sim de um novo e profundo corte,
provocado por uma lâmina maior e mais afiada.
Apesar da gravidade, aquele ferimento não doía.
— Ao que
parece você recebeu a mensagem.
Uma forte
luz branca tomou completamente aquela sala. O círculo e os símbolos que Ellen
havia desenhado brilharam por alguns segundos antes do teto começar a derreter
e cair sobre o chão na forma de um líquido vermelho e espeço, com a aparência
de magma mas sem ser quente. Ellen ficou
longe do círculo até o momento em que o teto parou de desabar.
— OI?!
ALGUÉM VIVO POR AI?!
Ellen
retornou para o centro da sala e olhou para cima. No lugar do círculo no teto
havia agora uma fissura com mais de cinco metros de altura e três de diâmetro,
onde Owen sorria do topo.
—Quem é viva
sempre aparece. Nossa... você está com uma aparência horrível.
Ellen pegou
a primeira pedra que encontrou e a arremessou com toda sua força na direção de
Owen, que por pouco não foi atingido em cheio.
— MAIS QUE
DIABOS! ESTÁ QUERENDO ME MATAR?!
— POR QUE
DEMOROU TANTO IDIOTA?
— Isso é
modo de tratar aquele que está aqui para te salvar?!
— Hã?! Eu já
estaria morta há séculos se dependesse de você para salvar minha vida!
Nesse
momento Aria apareceu no topo da fissura.
— Meu Deus...
Ela estava mesmo debaixo da terra...
— Ah...
Então é isso... Eu dou as costas por alguns minutos e você já sai correndo
atrás de um bordel...
Ellen
sussurrou enquanto apanhava uma segunda pedra, ainda maior que a primeira.
— Ei, Ei,
Ei! Calma! Eu não estava em nenhum bordel! Na verdade estive procurando por
você durante todo esse tempo!
— Sei!
Enquanto eu era sequestrada, aprisionada com uma provável assassina e depois
perseguida por um demônio, você estava se divertindo pela cidade, de namorinho com...
essa... prostituta!
—
Prostituta...?
Aria
sussurrou com um sorriso torto.
— Demônio?
Owen
perguntou com a mesma expressão.
— Que tal
você parar de falar besteiras e deixar eu te ajudar?!
— Ajuda? Não
quero mais.
— O quê?!
— Não
preciso mais da sua ajuda. Pode voltar para seu passeiozinho com essa loirinha.
Sempre soube que você tinha um fetiche por cabelos amarelos e peitos grandes...
Vão pombinhos, saiam da minha frente! Voem e reproduzam como os ratos com assas
que são!
— Que droga
Ellen! Você tem 10 anos por acaso?!
— O que é
isso? Ouço palavras cujos significados não compreendo... É uma pena eu ter
faltado àquelas aulas de ‘como falar com
um idiota’.
— Ah... Como
estou arrependido de ter aberto este buraco...
—
Hahahahahahaha
Aria começou
a rir despreocupadamente. Nesse pouco tempo que passou ao lado de Owen, ela
nunca imaginou que veria um garoto sério e calmo como ele discutindo com outra
pessoa como se fosse uma criança. Aos olhos de Aria aqueles dois aparentavam
ser muito próximos, pelo simples fato de Owen ter adivinhado o que Ellen queria
com apenas uma simples frase. O tipo de relação que Aria invejava.
— Você não
tem apenas um lugar especial. Você também
tem uma família, não é?
Aria sorriu
gentilmente para Owen.
— Do que
você está rindo, loira esquisita?
Ellen
resmungou enquanto franzia o cenho.
— Vocês formam
um lindo casal, sabia?
— O quê?!
Você tem ideia da merda que acabou de falar, loira diabólica?
— Diabólica?
Aria começou
a rir novamente, mas sua feição alegre logo foi substituída por um pânico
crescente.
— CUIDADO!
Ellen virou
o rosto atordoada para o local onde um minuto atrás o mutante estava
desacordado, mas não o encontrou.
— Ellen, na
sua direita!
Owen gritou.
O mutante
estava há apenas seis passos de distância.
Em uma
jogada de mão, Ellen girou seu chicote e o lançou, enrolando o braço direito da
criatura. Mas como se estivesse esperando por isso, ele cravou as garras de
seus pés no chão para não ser derrubado, e usou são mão esquerda para segurar o
chicote, puxando-o em seguida. Ellen voou cerca de dois metros, parando apenas
ao colidir violentamente contra uma parede.
A criatura,
que parecia ter recuperado um pouco da sua racionalidade, jogou o chicote para
longe, e como um tigre, partiu em disparada.
— Ah... Isso
doeu...
Assim que
Ellen conseguiu ficar de pé, o mutante já havia se aproximado o suficiente para
lançar um novo ataque. Como não pode reagir a tempo, ela acabou sendo atingida
por um soco no tórax, e rolou pelo chão até ser barrada por uma torre de caixas
de madeira.
— Ah...
Ah...
Ellen
retirou os vários objetos que estavam sobre si e ficou de joelhos, sentindo
dificuldades para respirar. Seu rosto estava coberto por poeira e leves
arranhões. Parado a poucos passos de distância o mutante aparentava estar
sorrindo. Um sorriso humano, como se estivesse consciente da impotência de
Ellen.
— Precisamos
descer e ajudar ela!
Aria gritou
desesperada. Owen mantinha uma feição séria enquanto tentava enxergar o que
estava acontecendo no subsolo.
— Não se
preocupe com Ellen. Você deveria estar preocupada com o que vai acontecer com
aquela coisa.
Owen sorriu
numa tentativa de acalmar Aria.
— ELLENIA!
MORRER AQUI SIGNIFICA QUE VOCÊ NÃO REALIZARÁ SEU SONHO DE PESAR 140 KILOS E TER
UMA LONGA E PLENA VIDA DE SOLTEIRONA!
No subsolo
Ellen deu uma risada fraca.
— Assim que
sair daqui com certeza deixarei você agonizando no chão, Owen...
Ela levantou
lentamente e abriu os braços, desafiando a criatura mais uma vez.
— Estou
curiosa para saber o que deve passar na cabeça da pessoa que criou você. Seria
o desejo de gerar um ser humano melhorado, ou a simples vontade de ficar mais
forte? Será que após criar a ‘criatura’ perfeita
essa pessoa pretende se tornar um ser evoluído também? Um Deus?
A criatura
gritou usando todo o ar de seus pulmões. Ellen deixou uma feição séria tomar
seu rosto e assumiu uma postura defensiva.
— Vamos
acabar com esse jogo de gato e rato para que eu possa ir atrás do cérebro por
trás tudo isso.
Dessa vez
foi Ellen quem avançou primeiro. O mutante lançou suas garras de uma forma que
acertasse o abdômen da garota, mas para não ser atingida Ellen deslizou de
joelhos, passando por baixo do braço da criatura. Em seguida ela deu um soco desajeitado no
peito do monstro, mas ao ver que não seria o suficiente, afundou seu pé no
joelho direito dele, fazendo-o cair no chão. Em seguida começou a chutar o
rosto do mutante seguidamente, e só parou quando o cansaço obrigou-a a recuar.
A cor do
líquido coagulado que descia pelo nariz quebrado da criatura estava mais para
preto do que para vermelho, provando que até mesmo o interior do corpo dele
havia se transformado.
Ellen deu um
passo para a frente ameaçando atacar novamente, mas parou ao sentir um ardor em
seus joelhos. Após olhar para suas pernas ela entendeu o motivo. Ao deslizar
pelo chão seu vestido acabou rasgando, não oferecendo a proteção necessária
para sua pele.
— Se
continuar desse jeito acabarei nocauteada antes dele...
O mutante
cravou suas garras na terra e levantou sem nenhuma dificuldade. Ellen cerrou os
dentes e grunhiu baixo, abrindo os braços novamente como se fosse um toureiro
provocando o touro para que ele avançasse.
— Você
sabia... que no momento em que uma forte corrente elétrica entra no corpo
humano, ela corre desesperadamente em busca de uma saída, acumulando-se nos
maiores músculos que são geralmente os das pernas...?
O mutante
rugiu e correu em disparada.
— ...Está
curioso para saber o que acontece depois...?
A criatura
lançou um golpe com sua mão direita. Ellen focou sua visão naquele ataque e
esperou o momento exato para revidar. Assim que as garras do mutante estavam a
centímetros de distância, Ellen agachou, desviando do ataque, e em seguida
tocou o peito do mutante com o dedo indicador de sua mão direita.
— ...Eles voam...
No segundo
seguinte a criatura foi arremessada, atravessando toda a sala numa velocidade
incrível, parando apenas ao bater violentamente contra uma parede, onde boa
parte da estrutura de pedra e barro caiu sobre ele. O mutante tremia como se um
raio o tivesse atingido.
— Ah... Só
pode ser uma brincadeira de mau gosto... Quanto mais forte o acerto, mais
rápido ele se levanta...
Ainda
tremendo o mutante começava a se levantar novamente. Sua resistência e
recuperação eram aspectos formidáveis, principalmente por se tratar de um corpo
moribundo. Ellen se perguntou como seria essa criatura se seu corpo estivesse
saudável e em forma.
— Eu com
certeza vou me arrepender disso, mas que opção eu tenho...? OOOWEEENN! TE
CONCEDO A PERMISSÃO PARA ME SALVAR!
Ellen correu
pela sala até encontrar seu Sensorium. Assim que o pegou retornou ao centro do
local ficando abaixo da fissura.
— Ellen, o
que diabos era aquilo?!
Owen
perguntou.
— Corta o
papo furado e me ajude a sair daqui!
— Seu
chicote! Use-o!
Ellen
apertou um dos botões de seu Sensorium retirando ainda mais corda, o girou
acima de sua cabeça por alguns segundos até que ele pegasse velocidade e o
lançou rumo ao topo da fissura. Owen segurou a ponta do chicote e o enrolou em
sua mão direita. Aria ao lado dele também segurou um pedaço da corda, e juntos
começaram a puxá-la.
Assim que
estava suspensa a quase dois metros de altura, Ellen falou.
— Não é
querendo apressar, mas aquela coisa nojenta está chegando!
O mutante
estava de pé novamente. Ele trotou cambaleante até o centro da sala e deu um
grande salto, segurando o calcanhar esquerdo de Ellen. Owen e Aria quase foram
arrastados para dentro da fissura por causa do peso excessivo.
— Ellen!
Você precisa... emagrecer... urgentemente!
— Não é hora
para piadas!
Ellen
começou a chutar o rosto da criatura, uma, duas vezes. Na terceira a sapatilha
de seu pé direito voou e caiu de volta ao subsolo. Um arrepio tomou o corpo
dela ao se imaginar caindo daquela altura.
— Solte-me!
Ela
continuou a acertar o mutante com seu pé descalço, até o momento em que ele
finalmente a soltou. Mas para evitar cair a criatura cravou suas garras na
lateral da fissura, e lentamente começou a escalar.
— Ellen,
você não vai conseguir chegar ao topo antes dele te alcançar novamente! Você
precisa pular!
Owen gritou.
Ellen nem ao
menos pensou em questioná-lo tamanha era a confiança que depositava nele.
Apoiou seus pés contra a parede da fissura e pegou impulso até o lado oposto,
utilizando-a como calço para saltar em seguida. Owen soltou o chicote, e
segurou a mão esquerda de Ellen. Aria também soltou o chicote (que desapareceu na escuridão da masmorra)
e segurou a outra mão dela. Os dois então puxaram-na para a superfície.
— Ah não...
A Maluca das Bombas vai me matar... É o terceiro Sensorium que perco neste
mês...
A criatura
rugiu, e imitando os movimentos de Ellen começou a saltar usando as paredes
como apoio.
— Corram!
Os três
correram na direção da residência de Guilherme, mas assim que escapou da
fissura, a criatura tomou a frente e os cercaram, forçando-os a darem meia
volta e entrar na floresta. Eles corriam o máximo que seus corpos permitiam,
mas às várias árvores e o terreno irregular era um grande atraso, facilitando a
aproximação do mutante. Sempre que Ellen pisava em uma pedra com seu pé
descalço um grito e um xingamento escapava pela sua boca.
— Não vamos
conseguir! Ele é muito rápido!
Aria gritou
em completo desespero.
— Não parem
de correr!
Owen falou e
parou bruscamente. Num piscar de olhos sacou seu Sensorium e expandiu sua lâmina
completamente. A criatura que vinha em alta velocidade não foi capaz de parar
antes de ser acertado em cheio no rosto pelo lado sem corte da lâmina da
espada. O monstro desabou, rolando pelo chão. Owen imediatamente deu as costas
e voltou a correr sem olhar para trás.
◊
◊ ◊
— Ellen... Ha... Ha... Você pode explicar o
que era aquilo...?!
Owen sussurrou.
— Lá em baixo... havia uma espécie de
laboratório... Ha... Aquela coisa... é resultado de algum tipo de experiência...
Ellen, Aria e Owen estavam sentados atrás do
largo tronco de uma árvore caída.
— Aquilo era uma pessoa?!
Aria perguntou.
— Sim... Havia vários outros, mas acho que
apenas aquele estava vivo.
Aria tremeu ao imaginar a cena brutal que
Ellen havia presenciado.
— Isso explica aquele enorme mural de pessoas
desaparecidas...
Owen levantou e olhou por cima do tronco a
fim de ver se ainda estavam sendo seguidos, mas não haviam sinais da criatura.
— Primeiro uma pessoa capaz de controlar
lobos, agora alguém capaz de se transformar em sei lá o quê. Essa situação está
ficando fora de controle.
Aria observou Ellen com o canto de olho e
reparou os joelhos feridos dela. No momento em que iria oferecer ajuda, Aria se
deu conta de que os ferimentos da garota de vestido azul pararam de sangrar num
piscar de olhos e os cortes estavam curando-se rapidamente.
— ...Você é uma das pessoas retratadas nos
quadros da casa de Marcos Arthmael, não é?
Ellen percebeu que estava sendo observada e
perguntou com uma sobrancelha levantada. Aparentemente era impossível algo
passar despercebido pelos olhos daqueles dois. Mas antes que Aria pudesse
responder, passos pesados sobre as folhas secas silenciaram a todos. Um rugido
ecoou antes do mutante pular o tronco da árvore e parar de frente para os três.
— Ninguém move um músculo...
Owen sussurrou.
— Você acredita mesmo que isso vai
funcionar...?
Ellen perguntou.
— Dá pra ficar calada?
— Cala a boca você...
— Por favor... Os dois poderiam fazer
silêncio?
Aria interferiu.
Pela primeira vez o mutante ficou ereto,
assumindo uma postura humana. Ellen já havia reparado que à medida que o tempo
passava, mais consciente a criatura ficava. Ele abriu a boca, mas em vez de um
grito, palavras escaparam num tom gutural.
— Ele... Ele...
quer vocês mortos... Ele... precisa que vocês mortos!
A criatura deu dois passos e ergueu sua mão
direita. Esse único ataque seria o suficiente para acertar as três pessoas que
estavam presas contra o tronco da arvore. As garras dele enfim cortaram o ar,
mas... pararam pouco antes de acertar a primeira pessoa da fileira, Aria.
— ...Ainda estamos... vivos...?
Ellen sussurrou.
O monstro abaixou o braço, grunhiu, e
lentamente começou a recuar, desaparecendo por entre as árvores da floresta.
Aria lentamente soltou o ar preso em seus pulmões enquanto lágrimas de alívio desciam
inconscientemente pelo seu rosto.
— Isso não faz sentido... Por quê...?
Owen sussurrou incrédulo e encarou Aria.
— ...Aquilo parou ao perceber que acertaria
você...
Ellen encarava suas mãos trêmulas, como
sempre acolhendo o medo que sentia como algo reconfortante e especial, um sinal
de que ainda estava viva. Ela sorriu, respirou fundo e ficou de pé.
— Levantem! Não temos tempo para ficar
vadiando. Precisamos voltar imediatamente para a cidade, comprar um vestido
novo, um par de sandálias bem caras para então termos uma conversinha com nossa
querida chapeuzinho.
Ellen deu uma risada vitoriosa enquanto Owen
e Aria mantinham os olhos vidrados no local onde o mutante desapareceu,
esperando que ele retornasse e os atacassem a qualquer momento.
09
16:50 P.M – Algum lugar de Jothenville
Três
crianças estavam sentadas sobre uma toalha empoeirada que fora estirada sobre a
grama alta. Nas mãos de cada um deles haviam varas de pescar, com suas linhas
devidamente apontadas para o rio que corria poucos metros à frente, esperando
que algo fisgasse o anzol. Mas por ser uma água muito poluída os peixes haviam
desaparecido há muito tempo atrás, e mesmo cientes desse fato os três irmãos
continuavam a perseverar debaixo do sol quente, sabendo que serão repreendidos por
seus pais se voltassem para casa de mãos vazias.
— Vocês
ouviram os novos boatos que estão circulando sobre a pessoa que controla os
lobos?
Uma garota
de cabelos ruivos e olhos castanhos que tinha por volta de dez a doze anos
falou.
— Sofia o que mais ouvimos são boatos. É
bem provável que essa história da pessoa de capuz seja algo inventado por algum
bêbado, não é verdade?
Um garoto
que tinha por volta de nove anos falou enquanto colocava uma isca no anzol de
sua vara de bambu.
— Concordo.
E mesmo que não seja uma invenção, a pessoa de capuz não é o único responsável
por toda a desgraça que vem acontecendo. Temos este rio como um bom exemplo. A
natureza confiou à água potável aos adultos, e eles a poluíram, assassinando
todos os seres que viviam ali. Os deuses confiaram a floresta e seus frutos aos
adultos, e em sinal de agradecimento os humanos derrubam e queimam as árvores
uma a uma. Não sei se os adultos são cruéis ou se as divindades são estúpidas.
A terceira
criança, um garoto de treze a quatorze anos complementou.
— Fico me
perguntando quanto tempo este planeta vai durar nas mãos dos adultos. Ou
melhor, estou curiosa para saber quanto tempo vai demorar para a natureza nos
expulsar do planeta que originalmente era dela.
A garota
ruiva chamada Sofia deu uma risada breve.
— Não acho
que a mãe natureza tenha uma paciência tão grande. Mas então, quais são esses
novos boatos que você mencionou?
— Ah, sim! É
que ouvi alguns adultos conversando na praça. Eles diziam que a pessoa de capuz
na verdade é um humano possuído por um espirito antigo e vingador. Se não me
engano os adultos chamaram esse espirito de Luison,
uma criatura meio-humana, meio-cachorro capaz de conversar e consequentemente
controlar todos os canídeos, o que explicaria os poderes da pessoa de capuz. Se
não estou enganada as características da pessoa que controla os lobos são a
pele pálida, o corpo esguio e os cabelos longos, características que batem com
várias das lendas sobre o Luison. Eles também disseram que aquele possuído por
essa criatura come a carne das pessoas que mata como um lobo selvagem, e por
nunca ficar satisfeito acaba devorando todas as pessoas, cidade após cidade.
Os outros
dois garotos assobiaram e riram logo em seguida.
— Você
estava se perguntando quanto tempo este mundo iria durar nas mãos dos adultos.
A resposta não parece muito animadora, não acha?
Sofia trocou
olhares rápidos com seus dois irmãos e ao mesmo tempo começaram a gargalhar
enquanto continuavam a respirar o ar podre que o rio espalhava, na esperança de
fisgarem algum peixe e assim não receberem uma bronca de seus pais.
Interlúdio 1
Um Breve Passeio Pelo Cemitério
Imagine como
seria entediante ler vinte páginas seguidas de pura enrolação, forçando-nos
àquela vontade inexplicável de jogar o livro na primeira lixeira que aparecer
pela frente e fazer algo mais produtivo, como sair com os amigos, saborear um
delicioso lanche, ou apenas dormir, adoro a palavra ‘dormir’, é a minha palavra favorita em toda a língua portuguesa.
Por isso lerei para você. Para te salvar dessa chatice sem fim e ir direto ao
ponto. Quem sabe eu não consiga diminuir essas vinte páginas para dez, ou até
menos, não é?
Antes de
tudo acho necessário voltar um pouco ao início, mais precisamente no momento em
que eu e meu parceiro adentramos no casarão de Marcos Arthmael, que chamarei de
‘Careca Idiota’ a fim de proteger sua
identidade. Hum... Acho que errei em alguma parte... Bem, não que isso importe.
Enfim, me senti incomodada desde o momento em que dei o primeiro passo naquele
lugar. Algo não parecia certo, como um quadro levemente torto que insiste em
deixar o espectador incomodado, ou aqueles momentos em que sentimos alguém oculto
nos observando. Olhamos com o canto de olho, mas não encontramos nada suspeito,
ainda assim aquela sensação não vai embora. Era dessa forma que eu me sentia. E
para piorar havia aquela governanta, me encarando a cada três passos. Suspeito,
não?
Logo após
tive aquela conversa calorosa com o Careca Idiota, onde deixei explicito o
quanto seria agradável trabalhar para ele, e como estava ansiosa por isso.
Após me
despedir educadamente, desci para a grande sala de estar, onde passei um bom
tempo apreciando as pinturas e logo após o imenso jardim. Nesse momento fui
atacada pelas costas.
Ah sim! Devo
mencionar alguns fatos importantes que podem ser úteis para sua compreensão da
história.
Primeiro: A
pessoa que me atacou não era forte. Tanto seu peso quanto seu porte físico eram
claramente femininos. Se não fosse o clorofórmio eu teria escapado facilmente.
Segundo (e talvez o fato mais importante): Os
calçados dessa pessoa eram sapatilhas brancas, simples e baratas, que por si só
já reduzia consideravelmente o número de suspeitos. Como não haviam sinais de
outros do gênero feminino além da governanta do Careca Idiota, ela
automaticamente foi parar no topo da minha pequena lista de suspeitos. Mas é
claro que eu não podia acusá-la sem ter 100% de certeza, então no momento em
que acordei e dei de cara com a chapeuzinho fajuta, coloquei meu formidável
plano em ação.
Nós passamos
algum tempo trocando elogios quanto as nossas vestimentas, apesar da minha ser
infinitamente mais elegante, marcamos um dia qualquer para fazer compras, e
logo após lancei meu anzol, com uma isca capaz de fisgar um tubarão.
Então a única opção que resta é: Você está
atrás de Marcos Arthmael Careca Idiota...
Mais um tempo
de carinhos e caricias antes da chapeuzinho num momento de descuido acabar
revelando sua verdadeira voz, a qual reconheci imediatamente. Não vou mencionar
de quem era a voz por que está mais do que óbvio. Se você não conseguiu
descobrir é por que você é um retardado...
...Sim, é da
serva que estou falando... Por volta de 40 anos, fraca, apática, poucos
centímetros maior que eu, voz rouca, todas as características batendo com a
pessoa de capuz... Conseguiu compreender agora?
Pois bem,
hum... Nossa, como pode existir algo tão chato? Precisa mesmo de todos esses
detalhes que servem apenas para deixar o livro maior? Que seja, vamos correr
algumas páginas. Eh... O momento em que encontrei o mutante... Eu correndo do
mutante... Eu lutando contra o mutante... Eu novamente... Outra vez... Só pode
ser brincadeira... O autor desse livro me ama por acaso?! Só tem eu aqui!
...No momento em que uma forte corrente
elétrica entra no corpo humano, ela corre desesperadamente em busca de uma
saída, acumulando-se nos maiores músculos que são geralmente os das
pernas...? Está curioso para saber o que
acontece depois...? Eles voam...
Ah... Aposto
que você também concorda que fui incrível nesta parte... (tosse, tosse) Voltando! Após escapar do mutante, ou melhor, após
ele fugir com o rabo entre as pernas, retornei à casa do Careca Idiota com meu
parceiro e uma vad-, quer dizer, uma garota loira/peituda chamada Aria, e fomos
ao encontro da minha única suspeita.
O resultado
da nossa visita foi um verdadeiro tumulto. Interrogamos a governanta e
revistamos seu quarto. Ela obviamente negou ser a pessoa de capuz vermelho, e
como não encontramos nada que pudesse incriminá-la, pedimos pela sua prisão
domiciliar deixando um guarda para vigiá-la 24 horas. Os privilégios sem sombra de dúvidas é a parte que mais gosto neste
trabalho.
Enfim! O
Careca Idiota observou tudo de perto, mas na minha opinião não parecia muito
interessado. Aria, ao contrário de seu pai, questionou e atacou Owen
verbalmente, argumentando que conhecia a serva desde que nascera e acreditava
firmemente que ela nunca seria capaz de fazer algo tão cruel como trancar toda
uma população dentro de sua própria cidade. Mas Owen era alguém lógico acima de tudo, e após ouvir meus argumentos
concordou que a serva era nossa única suspeita.
Após isso
conduzimos uma dezena de guardas até a fissura que levava ao labirinto
subterrâneo. Uma verdadeira força tarefa para investigar as salas secretas e
todos os objetos suspeitos que tinham em cada uma delas. Também resgatar, ou
melhor, retirar e levar para um local adequado todos os corpos que encontrei.
Eu e meu parceiro não acompanhamos o trabalho dos guardas. Como estava prestes
a anoitecer resolvemos voltar ao centro de Jothenville e encontrar uma pousada
que a peitu-, quer dizer, Aria nos indicou. Como o Careca Idiota nos prometeu
uma refeição, bem, eu não vi motivos para recusar.
Eh... Vamos
ver se tem mais alguma coisa relevante neste livro... Hoho, Algo escrito com uma tinta de cor
diferente...
...Por fim, antes de descobrir como termina
esta história, peço que você faça exatamente o que pedirei agora. Não tire os
olhos dessas páginas.
Tudo está prestes a mudar. Você está prestes
a ver o quanto um coração pode ser cruel, o quanto um sorriso iluminado pode
ser falso, o quanto os humanos podem ser ingratos.
Fico me perguntando por quanto tempo você
continuará com essa expressão boba, sorrindo com o canto da boca quando recebe
um elogio, rindo despreocupadamente quando contam uma boa piada, desviando o
olhar quando sente vergonha, falando inconscientemente quando te surpreendem...
Nunca demostrando suas frustrações, nunca expressando sua dor, sua raiva, suas
obsessões, seu cansaço, suas decepções, suas perdas, sua insegurança, suas
feridas, sua angústia... Seu sofrimento... Sua agonia...
Como sei de tudo isso? Eu sei por que também
sou assim. Eu sei por que todos os humanos, inegavelmente e irrefutavelmente
são assim.
Se você é uma pessoa normal, com certeza irá
odiar o final desta história. Se você é alguém quebrado, com certeza irá apoiar
nossas decisões.
Por isso peço para que continue lendo,
afinal esta história deixará claro qual desses dois tipos de pessoa você é.
Siga essas palavras que descrevem este mundo distorcido. Acompanhe-me nesta
estrada tortuosa que termina na agonia escondida no fundo da mente humana.
(Risos) Você era realmente um idiota
metido... Sempre com esses pensamentos que nunca fui capaz de entender. Você
era um louco reprimido com aquele poder de persuasão que sempre me fazia seguir
em frente. Eu admirava essa parte de você, eu... invejava a calma que você
transmitia para aqueles que entravam em desespero...
No momento
que minha bússola quebrou, quando eu não sabia mais para onde ir, você me deu
um lar. Você me deu... um lugar para chamar de ‘casa’. Durante todos esses dias inesquecíveis que passamos juntos,
eu amei odiar você. (Risos) Por isso
queria te dizer pelo menos uma vez, obrigado por tudo...
10
17:37 P.M – Túneis Subterrâneos de Jothenville
Fios d’água
minavam das paredes, e a medida que uniam-se no chão formavam pequenos córregos
que corriam nas laterais dos corredores. A misteriosa escuridão e o silêncio
profundo eram responsáveis por aquele angustiante e incômodo frio na barriga.
Nem mesmo o experiente líder dos guardas estava imune ao pavor que aqueles
túneis transmitiam.
Cerca de dez
homens haviam descido até a cidade subterrânea com o auxílio de cordas. Com
apenas três lamparinas os guiando, os soldados seguiram pela rota que Ellen
havia descrevido até a sala que mais parecia uma grande biblioteca, mofada e
sombria. Dentre os muitos sentimentos diferentes, a perplexidade era a mais
óbvia nos olhos de cada um deles, afinal aqueles homens estavam presenciando
algo inimaginável, escondido bem debaixo do nariz das mais de doze mil pessoas
que viviam na cidade acima deles.
Um dos
homens se atreveu a olhar para cima. Era impossível enxergar o teto de tão alto
que era. A escuridão aparentava estar engolindo as gigantescas prateleiras de
madeira maciça, enquanto continuava a avançar lentamente como se tivesse a
intenção de devorar os guardas.
— ...Algo
assim deve ter levado décadas para ser finalizado, mesmo com a ajuda de um
exército de pessoas...
— Isso se
este lugar tiver sido construído por pessoas...
— O que você
quer dizer com isso?
—Ora, não é
obvio? Estou falando de vampiros!
— Vampiros?
Hahaha, acho que a falta de oxigênio está começando a afetar seu cérebro.
— Ei! Estou
falando sério! Eles existem de verdade! São imortais e incrivelmente fortes! O
que mais poderia explicar um lugar como este?!
Esse último
comentário provocou uma enxurrada de gargalhadas por parte dos outros soldados,
até que o líder grisalho e rouco, os interrompeu.
— Façam
silêncio todos vocês. A Legior disse que em algum canto desta sala há uma
fissura que leva para o local onde estão os corpos. Procurem-na.
Ele acenou
com a mão direita, mandando os soldados se espalharem. Não demorou muito até um
deles encontrar um pequeno buraco na parede, que foi rapidamente ampliado com o
auxílio de uma marreta. Um homem que segurava uma das lamparinas avançou pela
fissura com o resto do grupo em seu encalço.
Nessa nova
sala, ampla e retangular, haviam algumas correntes com algemas pendendo do teto
baixo e várias manchas de sangue pelo chão, nada mais.
—Está
vazio... Não há nenhum corpo aqui...
O líder
aproximou-se de uma das correntes e a verificou. A resistente algema de metal
na sua ponta havia sido quebrada a força. Além das poças de sangue no chão
haviam dezenas de pegadas descalças, de diversos tamanhos, que atravessavam a
fissura na parede.
— Não parece
que alguém tenha roubado os corpos... Na verdade... parece que os mortos estão
andando...
O líder
sussurrou.
Nesse
momento o barulho seco de uma arma sendo carregada ecoou, vindo da entrada da
fissura.
— Ora,
ora... Parece que os ratos finalmente encontraram o queijo...
Todos os
soldados voltaram-se para o recém-chegado que bloqueava a única saída.
— ...E
consequentemente ficaram presos na ratoeira...
Ele usava
jaleco, calças e luvas que provavelmente já foram brancas algum dia. Seus olhos
estreitos marcados por olheiras grossas e roxas fitavam os guardas com
indiferença e superioridade. Seu peso acima do ideal fazia com que uma leve
corcunda tomasse forma sobre sua roupa.
— Marcos Arthmael... O que você está
fazendo aqui...? —
O líder dos
guardas sussurrou incrédulo e começou a avançar. Mas foi obrigado a parar no
momento em que uma Winchester 1873 nas mãos de Marcos foi apontada na sua
direção.
— Ah... Essa
é uma pergunta difícil de responder... Sabe, não era minha intenção iniciar o
próximo passo do meu plano tão cedo, mas aqueles
dois tornaram-se uma dor de cabeça mais rápido do que eu previa. Bem,
confesso que o erro foi meu. Eu nunca deveria ter enviado aquela carta afinal.
Todos os
subordinados estavam perplexos, e quase que ao mesmo tempo começaram a lançar
uma enxurrada de perguntas.
— O que isso
significa...?!
— Você é o
responsável por tudo que vem acontecendo em Jothenville?!
— É você
quem está atacando os comboios de comida?!
— Os ataques
dos lobos também são obras sua?!
Marcos
levantou a arma e suspirou de uma forma alta e exagerada.
— Ora,
ora... São realmente muitas perguntas... Mas sinceramente, não tenho intenção
de dar respostas para ratos como vocês.
— Como pode
fazer isso com seu próprio povo?!
Você devia estar lutando por nós, e não transformando-nos em objetos de tortura!
O líder dos
guardas levou sua mão esquerda até a bainha da espada curvada presa em sua
cintura, ação que fez Marcos dar uma risada fraca e debochada.
— Acham que
o que estou fazendo é errado? Como podem me julgar se nem ao menos tentaram
enxergar o que está acontecendo pelo meu ponto de vista? Vocês podem pensar que
estou destruindo Jothenville, mas na verdade estou reconstruindo-a, tornando-a
mais forte, mais... superior. A cegueira desta população é um dos muitos erros
que pretendo concertar.
— Seu ponto
de vista?! ISSO É INSÂNO! Em pouco tempo todas essas pessoas estarão se matando
pelo que resta de alimento, e mesmo assim você pretende continuar com essa
loucura?!
O líder
grisalho cerrou os dentes e sacou sua espada, que tremia levemente. Suor frio
descia pela sua nuca.
— Você está
errado. O que estou fazendo é apenas um teste para selecionar os mais aptos
para continuarem ao meu lado. Eu não preciso daqueles que não nasceram para
sobreviver. Apenas os mais fortes serão capazes de realizar meu sonho...
— Isso é
genocídio...
— Ah... Pelo
jeito é inútil continuar discutindo o que é certo com pessoas como você. Sabe,
há muito trabalho a ser feito, e pouco tempo restando, se é que podem me
entender.
—
Desgraçado... Se matar você é a única forma de salvar essas pessoas, então que
assim seja!
— Quero ver
você tentar...
O líder
grisalho apertou o punho de sua espada e avançou, mas num piscar de olhos
Marcos apertou o gatilho, sem hesitar, e o guarda desabou com um buraco em seu
peito.
Todos os
subordinados gritaram, sacaram suas espadas e ao mesmo tempo avançaram. Marcos
apontou seu rifle e voltou a atirar com a rapidez e a precisão de um soldado
bem treinado. Um a um os guardas caiam retorcendo-se e gritando de dor. Eles
eram atingidos principalmente nas pernas, impossibilitando que continuassem de
pé.
Quatro
guardas conseguiram se aproximar antes que Marcos pudesse disparar. Todos eles
ergueram suas espadas, e ao mesmo tempo lançaram ataques circulares visando a
cabeça de Marcos, que em nenhum momento ameaçou desviar.
— Vão...
Um sussurro
feminino, seguido por rugidos de animais.
Dois grandes
lobos marrons apareceram da escuridão, e em alta velocidade pularam sobre os
últimos soldados que continuavam de pé. Todos eles desabaram no chão apenas com
o susto, mas assim que tentaram se levantar o jogo já havia acabado. Um dos
lobos mordeu o pescoço do primeiro soldado, mastigando-o por poucos segundos
antes de partir para cima do próximo, rasgando o peito dele com as garras que
mais pareciam navalhas. O segundo lobo fez o mesmo com os outros dois que
restavam, melando seu focinho e suas patas com o sangue que jorrava aos
esguichos.
— Parem!
A voz
feminina ecoou novamente e uma nova pessoa surgiu da escuridão, ficando ao lado
de Marcos Arthmael. Essa pessoa vestia um capuz vermelho com uma máscara de
cera que encobria completamente seu rosto. Os lobos, obedecendo-a começaram a
recuar, permitindo que os guardas não fossem devorados vivos. A pessoa de capuz
tremia levemente, mostrando claramente o quanto aquela cena cruel a incomodava.
— Eu preciso
que você vá atrás daqueles dois e
acabe com eles. No início eu planejava torná-los meus aliados, mas agora
percebo que esse é um plano arriscado demais.
A pessoa de
capuz abaixou o rosto sentindo seu estômago revirar-se.
— Senhor...
Isso... é realmente necessário...?
— ME
OBEDEÇA! Não podemos deixar que a interferência deles acabe arruinando nosso
objetivo. Você entende que isso é necessário, não é?
— Sim...
senhor...
E sem dizer
mais nada a pessoa de capuz deu as costas e desapareceu na escuridão com os
dois lobos em seu encalço.
— Ora,
ora...
Marcos
voltou sua atenção para os soldados que gemiam e retorciam-se no chão.
— Muito bem,
acho que já está na hora de acabar com o sofrimento de vocês, afinal não sou
uma pessoa tão cruel assim.
Um dos
guardas que fora mordido no pescoço por um dos lobos levantou sofridamente e
ergueu sua espada. Marcos arregalou os olhos e deu um sorriso torto. Levantou
seu rifle e apertou o gatilho, mas apenas um barulho seco ecoou. A arma estava
descarregada.
— Opa... É
meu amigo... Parece que hoje não é seu dia de sorte. Eu queria acabar com seu
sofrimento o mais rápido possível, mas infelizmente minha munição parece ter
acabado...
O soldado
avançava lentamente, um passo de cada vez, respirando com grande dificuldade. O
sorriso de Marcos alargou-se ainda mais, fascinado pela força de vontade que o
homem na sua frente demonstrava, imaginando-o como um incrível braço direito.
Marcos
largou seu rifle e sacou uma espada avermelhada que estava presa em sua
cintura, apertando em seguida um botão em seu punho, onde várias pontas
serrilhadas emergiram da lâmina, transformando-a num tipo de lança. Aquele
equipamento era sem sombra de dúvidas um Sensorium. Marcos desarmou o guarda
facilmente, deixando-o paralisado, temendo pela sua vida.
— Não
precisa se preocupar... Não só você, como todos os seus amigos são mais úteis
vivos... Ou quase isso.
Marcos
gargalhou, girou sua espada e cortou o soldado, do pescoço até o estômago,
fazendo sangue jorrar sobre suas vestes e seu rosto. O guarda caiu em seguida,
como uma pedra no chão.
Mas o
cientista não parou. Ele cortou a mão esquerda do guarda caído, em seguida
perfurou sua perna. A cada grito desesperador do soldado uma risada fraca
escapava pelos lábios do homem que o atacava. Marcos observava atentamente as
diversas reações do soldado, aprendendo
de uma forma cruel o funcionamento do corpo humano.
Como um bom
cientista, Marcos Arthmael adorava conhecimento.
— ...Me
sinto como uma criança com um brinquedo novo...
Marcos
caminhou até uma grande mesa na lateral da sala, e abriu uma pequena caixa de
madeira. Dentro dela haviam dezenas de seringas cheias de um líquido carmesim.
Gritos de
terror ecoaram por aqueles túneis subterrâneos durante toda a noite, passando
despercebido pelas milhares de pessoas que viviam em sua superfície.
***
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