O veneno, a despedida, e a vela que nunca iluminará.
Interlúdio 2
Crianças Movidas Pela Fé, Vingança e Desespero Pt.3
21
00:37 A.M – Jardim dos Mortos
Aquele
cenário parecia ter saído de um conto de fadas. A luz prateada que atravessava
o espeço domo de vidro era refletida pelo piso de granito polido, dispersando
toda a iluminação pelo ambiente. Apesar de ainda ser madrugada, toda a estufa
brilhava como um gigantesco diamante bruto.
Era o
cenário perfeito para uma despedida.
O aroma
misterioso que vagava pelo ar era viciante, atordoador, como uma droga
poderosa, imaculada, impiedosa. Incontáveis plantas de diferentes espécies formavam
um labirinto fantasmagórico, frio e incompreendido. Talvez bastasse apenas um
pouco da luz solar para que todas aquelas plantas pudessem enfim, florescer.
No centro
da estufa estavam Bianca e Aria. O grande espelho de mentiras que separavam as
duas caia aos pedaços à medida que os pecados do passado eram confessados.
— Decidimos
que os portões de Jothenville permaneceriam fechados, pois era necessário fazer
constantemente testes em seres vivos para a criação e aperfeiçoamento da ‘cura’.
— Aria ponderou por alguns segundos. — Mesmo com quase 3000 cobaias à
disposição, o único resultado proveniente das pesquisas de Marcos foram os Meio-Humanos. Seres irracionais, movidos
pela ganância e pela insanidade. Apesar de possuírem uma grande resistência a
ferimentos e um incrível raciocínio evolutivo, eles morrem. Marcos não foi
capaz de criar uma ‘criatura perfeita’, muito menos uma cura para a morte.
— A
população de Jothenville... Todas aquelas pessoas desaparecidas... — Bianca havia
atingido o seu limite. — Desde que essa feiticeira entrou na sua vida, você tem
sido usada e manipulada... Ela te mudou tanto, que neste momento eu mal posso
te reconhecer.
Ao ouvir a
resposta fria da garota de cabelos pretos, as pernas de Aria começaram a tremer
em pânico crescente.
Fui negligente. Por não suportar mentir para
ela, acabei revelando a minha verdadeira face. Agora que ela sabe o quão podre
eu sou por dentro, com certeza serei odiada.
— Durante
essa semana, acompanhei de perto o desespero dessas pessoas, mas em nenhum
momento senti pena ou compaixão por elas. Sequer pensei no quanto estavam
sofrendo. — A loira sussurrou, sentindo
nojo de si mesma. — Hoje, pela primeira vez, usei o meu poder para feri-los
diretamente... Aconteceu tão rápido que sequer olhei para o rosto deles... —
Durante a batalha contra os guardas nos túneis subterrâneos, a única coisa que
passava pela mente de Aria era proteger seu pai e, consequentemente, a única chance
de ressuscitar Sarah. — Como se fosse algo normal, tentei matar Owen... Se ele
não tivesse desviado, o lobo que eu controlava teria arrancado a cabeça dele.
Antes que eu percebesse, havia destruído os poucos bens que fui capaz de
juntar. Descartei os meus relacionamentos, meu futuro, minha alma, tornando-me
o pior dos monstros. Este poder está me controlando aos poucos, eu posso
sentir. Em pouco tempo terei me tornado um demônio por completo...
Aria se
abraçou com uma expressão dolorosa no rosto, desejando fugir para o mais longe
possível de Bianca e seu julgamento.
— ...Como
você pode ter tanta certeza de que esta mulher é minha mãe...?
Bianca
desviou o olhar para a mulher dentro do caixão.
— Eu...
presenciei o momento em que você foi encontrada por Abadia e Dio, então não
restam dúvidas.
Logo após o
jantar com Owen e Ellen, Bianca havia ido até o armazém da hospedaria atrás de
alguns utensílios que sua mãe havia pedido. Após abrir a porta, Bianca acabou
encontrando sua amiga no exato momento em que ela vestia a capa vermelha.
— Quando te
encontrei no armazém, por que mentiu para mim? Por que me fez acreditar que a
Legião era a responsável pelo que vinha acontecendo em Jothenville?
Aria hesitou
por quase um minuto, mas no fim decidiu revelar os seus sentimentos.
— Menti por
que fiquei com medo... Pois sabia que você nunca mais me olharia da mesma
maneira se soubesse da verdade.
Finalmente
chegou a hora do veredito. Aria reuniu coragem e olhou nos olhos de Bianca. Ao
notar a feição perturbada na face da sua antiga amiga de infância, lágrimas de
desespero começaram a descer pelo seu rosto.
Aparentemente eu estava certa... Seus olhos
só expressam pavor e medo...
...Olhos
idênticos aos do seu pai, cheios de nojo, desprezo e repulsa... Isso é tudo que
ela sente por você agora.
O corpo de
Aria estremeceu assim que uma voz firme ecoou dentro da sua cabeça. Antes ela
pensava que aqueles sussurros eram apenas ecos dos seus pensamentos, mas nesse
momento ficou claro que aquela voz tinha uma origem diferente.
A maldição que se escondia dentro do corpo
de Aria possuía uma consciência própria. E essa consciência estava ficando cada
vez mais forte com o passar do tempo.
No
final, sua preciosa amiga também te descartou. Os laços que você tanto
valorizava quebraram-se facilmente como fios de seda.
Não! Bianca não me abandonaria... Desde que
nos conhecemos, ela sempre esteve do meu lado... Ela sempre esteve presente
quando eu precisava de alguém para me apoiar...
Uma
gargalhada sarcástica.
Mate-a.
[.......]
Se
você deseja mesmo trazer a sua mãe de volta à vida, Bianca tem que morrer. Esta
é uma das condições que eu imponho para realizar o seu desejo.
Uma grande
batalha mental teve início, onde a consciência que saísse vencedora ganharia o
controle do corpo físico de Aria.
Bianca
é o único obstáculo que te impede de alcançar a verdadeira liberdade. Enquanto
ela respirar, você estará destinada ao fracasso. E no seu caso, o fracasso
significa a morte.
Cale-se...
Mate-a.
Fique calada!
MATE-A,
ANTES QUE ELA TENHA A OPORTUNIDADE DE TE TRAIR!!
A voz de repente
tornou-se gutural, como a de um demônio. A força que aquelas palavras impunham
forçaram Aria a cair de joelhos, em pânico absoluto.
— Aria?! O
que houve?!
Bianca
correu ao encontro da loira, apoiando-a antes que ela caísse no chão.
— VÁ
EMBORA! Eu não preciso de alguém sentindo pena de mim! — Ela levou as mãos à cabeça,
desesperada. — Deixe-me sozinha, por favor... Eu não suporto que você me olhe
desta maneira... Não quero fazer com que você me odeie ainda mais...
— Não irei
embora... — Bianca abraçou-a com força. — Como eu poderia te abandonar no
momento em que você mais precisa de ajuda? Como eu poderia te abandonar no
momento em que você finalmente conseguiu se abrir para mim...
Enquanto desabafava,
uma importante recordação passou pela sua mente.
“Bianca, alguma vez você parou para pensar
em como será a sua vida no futuro?”
Aria perguntou.
“Hum... Acho que no momento não possuo uma grande
ambição. É bem provável que eu acabe cuidando da pensão com a minha mãe.”
Bianca respondeu em meio a risadas.
“Eu... quero fugir desta cidade...”
Aria ergueu a cabeça e olhou para a
imensidão no horizonte.
“Eh? Mas por quê?”
“Você não entende? O mundo é gigantesco,
Bianca. Sonho todas as noites com as maravilhas que devem existir fora destas
muralhas. Quero viajar e conhecer pessoalmente todos os paraísos escondidos
abaixo do céu...”
Bianca sorriu ao notar o olhar de admiração
no rosto da sua amiga.
“Tenho que admitir que essa é mesmo uma grande
ambição. Pensando bem, deve ser incrível viajar por todo o planeta, conhecer
todos os tipos de culturas e costumes. Seria a realização de um sonho...”
Aria deu um sorriso iluminado.
“Então por que você não vem comigo?! Não
precisa decidir agora. Te darei algum tempo para pensar.”
Bianca acenou com a cabeça.
“Pensarei seriamente na sua oferta.”
— Mesmo
estando sempre ao seu lado, eu nunca fui capaz de notar o quanto você estava
sofrendo... Mesmo me autodenominando sua melhor amiga, nunca fui capaz de ver
por detrás de todos os seus sorrisos, de todas as suas gentilezas... — As
lágrimas de Bianca caiam sobre o rosto da loira. Eram tristes e quentes, mas de
certa forma, reconfortantes. — Durante todos esses anos eu fui tão... inútil!
Eu queria ter sido capaz de te ajudar antes, eu queria ter sido capaz de
salvá-la de toda essa angustia!
A voz
gutural que gritava na mente de Aria havia silenciado. Os pensamentos dela
estavam limpos pela primeira vez nesta longa semana.
Bianca
apoiou a cabeça de Aria sobre o seu ombro.
— Há algum
tempo atrás você me convidou para fugirmos desta cidade, lembra? Sair e ver
todas as maravilhas espalhadas pelo mundo... — Bianca respirou fundo numa
tentativa de se acalmar. — Vamos embora... Apenas nós duas... Não me importo de
deixar tudo para trás contanto que você esteja comigo...
Aria deu um
sorriso torto.
— Durante
toda a minha vida desejei um poder que fosse capaz de reconstruir a minha
família. Transformar essa cidade e criar um futuro onde eu fosse aceita por
todos. — Aria fitou o céu escuro através do domo de vidro. — Mas o futuro que
Owen me mostrou é completamente oposto àquele que tanto desejo. Os crimes que
cometi são imperdoáveis... Se fugirmos, a Legião nos perseguirá pelo resto de
nossas vidas. Se formos pegas, seremos punidas com tortura e esquartejamento...
— Aria tocou o rosto Bianca carinhosamente. — Não posso levá-la comigo, pois
seria o mesmo que entregá-la de bom grado para a morte. Não há um futuro feliz
reservado para nós...
— Você
ainda não entendeu? Não sairei do seu lado nunca mais...
Bianca levantou
e, após um sorriso, ofereceu sua mão direita. Aria lembrou imediatamente da
noite em que elas se conheceram.
— Essa é a
segunda vez que você estende a sua mão para mim... A segunda vez que você me
salva... — Com a ajuda da garota de cabelos pretos, Aria se levantou. — Eu
nunca agradeci, não é. Nem mesmo uma única vez.
— Não há
nada para agradecer...
— Está
errada. Se você não tivesse tomado a iniciativa para falar comigo, minha infância
não teria sido tão alegre. Todas as brincadeiras, todas as risadas, todas as
aventuras... Finalmente percebo que eu tinha uma ótima vida nas mãos. — Aria
sorriu. Um sorriso verdadeiro, diferente de todos os outros que Bianca já havia
presenciado durante todos esses anos de convivência. — Muito obrigado, por
tudo.
Aah... Como você é fraca, Aria
Amarante Arthmael...
Não que isso importe. Na verdade foi
até melhor assim, pois no momento em que o seu coração fraquejou, eu venci.
Aria
abraçou Bianca uma última vez e, em seguida, acertou o estômago dela com um
soco, poderoso o suficiente para fazê-la cair de joelhos.
— Agh...
Aria...?
Símbolos tribais
começaram a transparecer na pele da mulher loira. Seus olhos azuis ganharam aos
poucos um tom vermelho sangue, apagando seu brilho natural.
— Quem
diabos é você...? O que fez com a Aria!
Bianca
sussurrou, ainda atordoada por causa do golpe repentino.
— O que
sou? Como explicar de uma forma que você entenda? Eu sou a existência que
invadiu o corpo de Aria sete dias atrás. A escuridão que manteve-se oculta no
fundo deste coração até esse exato momento. — A loira gargalhou sadicamente. —
Assim que a antiga Aria desistiu de
seus objetivos, eu encontrei uma
brecha para escapar... Aah... É tão bom respirar novamente!
— Traga-a
de volta... Traga Aria de volta, AGORA!
Bianca
gritou, furiosa.
— Antes de
qualquer coisa, deixe-me explicar algo importante. Não acredito que você verá a
sua querida Aria novamente. — A loira repousou seu dedo indicador sobre os
lábios de Bianca. — Veja bem, todas as pessoas são movidas essencialmente por
quatro coisas: Fé, vingança, desespero e amor. De todos eles, o amor é o único
sentimento que tem o poder de enfraquecer uma pessoa. Aria perdeu a posse de
seu corpo no momento em que deixou esse sentimento nojento dominar o seu
coração. — Ela gargalhou, em êxtase. — Por isso a humanidade é tão imprevisível!
Todos evoluímos ao experimentar diferentes tipos de situações e sentimentos,
onde graças a essas experiências, nascem os vencedores e os perdedores. Talvez
você já tenha ouvido falar que o amor move as pessoas, mas pense por um
segundo. Você não fica mais forte ao amar alguém, muito pelo contrário, você
apenas ganha uma grande fraqueza a ser explorada. Apenas os gananciosos ficam
ricos, apenas a vingança te deixa mais poderoso, apenas a fé é capaz de unir
milhares de pessoas em nome de um único objetivo.
— O que
você quer dizer com isso...?
Bianca
murmurou, sentindo que algo terrível viria a acontecer se ela não fosse capaz
de parar Aria.
Bianca
mordeu o lábio inferior.
— Não
deixarei que você vença... Eu trarei Aria de volta custe o que custar!
A loira
sorriu ironicamente.
—
Sinceramente, eu aprecio os seus esforços, mas esta é provavelmente a última
vez em que nos encontraremos. — Por ser familiarizada com a anatomia humana e
seus pontos de pressão, Aria precisou de apenas um golpe para deixar Bianca
inconsciente. — Adeus, minha mais preciosa amiga. Espero que possamos nos
encontrar novamente em uma outra vida... Talvez lá tudo possa ter um fim
diferente...
A loira
deitou-a cuidadosamente sobre o chão da estufa, ao lado do caixão onde Sarah
repousava. Logo após deixou aquele lugar, sem olhar uma última vez para aqueles
que ficavam para trás no Jardim dos Mortos.
22
02:52 A.M – Casarão de Marcos
As noites
de Bianca costumavam ser tranquilas. Boa parte delas passadas no conforto da
pensão de sua família, numa rotina que consistia basicamente em um jantar com
seus familiares seguido por uma rápida noite de sono. Por ironia do destino, a
primeira madrugada que ela passava acordada havia se tornado o pior pesadelo de
sua vida.
Após
acordar sozinha na estufa, Bianca revirou todos os cômodos da capela antes de
sair pela cidade a procura de Aria. Quase uma hora de busca depois, ela parou
na frente do casarão de Marcos Arthmael.
Com exceção
das lamparinas no lado de fora, todas as outras luzes estavam apagadas.
Guardando a entrada estava um único soldado armado, quase cochilando ao lado da
porta. Evitando chamar atenção, Bianca silenciosamente deu a volta na
residência e fitou o quarto de Aria, notando a ausência de luz.
— Será que
você também não está aqui...?
Ela provavelmente está com Marcos no
subterrâneo...
O medo que
a afligia cresceu ainda mais. Bianca tentava de todas as formas encontrar uma
maneira de ajudar a sua amiga, mas quanto mais pensava, mais sua mente ficava
em branco. Ela não era capaz de prever o que viria a seguir, mas uma coisa era
certa: A vida de toda a população de Jothenville estava em jogo.
Enquanto
seguia rumo a saída, Bianca notou uma luz avermelhada que atravessava as
frestas rasas de uma janela de madeira no primeiro andar.
O quarto da empregada...
Ela se
aproximou e tentou olhar pelas frestas, mas a única coisa que pode ver foi o
tremular da chama de uma vela.
— Quem está
ai?
A voz seca
da empregada mal foi capaz de alcançar os ouvidos da garota de cabelos pretos.
— Sou eu,
Bianca, amiga de Aria. Lembra-se de mim?
— Você tem
ideia de que horas são? O que está fazendo aqui?
Apesar do
tom irritado, sua voz não passava de um sussurro.
— Precisamos
conversar... sobre a sua filha.
O som de
algo se quebrando ricocheteou pelas paredes do quarto. A empregada havia
deixado cair a xicara que segurava, tamanho o choque causado pela frase de
Bianca.
— Por
quê...? Como você... sabe disso...?
— Aria me
contou a verdade sobre tudo relacionado aos lobos e a pessoa de capuz
vermelho... — Bianca se apoiou na parede ao lado da janela, de onde podia ouvir
a respiração ofegante da empregada. — ...Inclusive sobre você ter escondido que
era a verdadeira mãe dela...
— Ela
sabia?!
A empregada
levantou seu tom de voz pela primeira vez.
— Aria... não
chegou a contar que sabia sobre você...?
Pensando bem, nenhuma vez ela mencionou que outras
pessoas além de Marcos sabiam da existência de sua mãe de sangue. Ah, não... Eu
posso ter cometido um grande erro agora.
Mal sabia
Bianca que ela havia incitado a fagulha para um novo desastre.
— Ah...
Durante toda essa semana Aria esteve ciente de que eu era a mãe dela... Já era
de se esperar, considerando o modo como ela vinha manipulando Marcos... — A
empregada começou a chorar em silêncio. — Agora entendo o porquê dela sequer
olhar para o meu rosto. Em vez de me encarar, ela preferiu se afastar. Ela
sabia que agir friamente comigo era a mais cruel punição...
— Ainda há
tempo de corrigir os seus erros! Tenho certeza de que Aria não odeia você. Ela apenas
está confusa por ter descoberto a história de sua vida pela boca de outra
pessoa... É necessário apenas uma conversa sincera com a sua filha para que
tudo se resolva. Ainda não é o fim...
— Aria... sabe
quem é o assassino de Sarah...? — Bianca moveu a boca três vezes, mas sua voz
se negou a sair. — Acho que o seu silêncio respondeu a minha pergunta... — Uma
risada fraca escapou pelos lábios trêmulos da empregada. — Ah... Ela deve mesmo
me odiar... Todas as vezes que nos encontrávamos, uma feição enojada tomava o
seu rosto. Ela deve ter desejado a minha morte durante cada segundo desta
maldita semana!
— Ela não
pensa assim, acredite! Eu sei que você está arrependida, também sei que Aria entende
o quanto você sofreu para poder ficar ao lado dela! Deve ter sido desesperador
viver todos esses anos sobre o mesmo teto que sua filha sem poder revelar a
verdade para ela, mas nesta noite você pode dar um rumo diferente a essa
história! Nesse momento você é a única capaz de salvar Aria da sua
autodestruição.
Autodestruição,
a melhor definição para o desejo que Aria buscava realizar nesse momento.
— Estava me
perguntando que fim tomou a garota gentil que vi crescer... Me perguntava o que
teria acontecido de tão ruim para ter desfigurado tanto os sentimentos dela...
Mas em nenhum momento passou pela minha cabeça que eu tinha sido o gatilho... —
A empregada soluçava a cada poucas palavras. — Mesmo sem entender o que estava
acontecendo, apoiei as decisões dela das sombras. Mesmo sabendo que a estrada
que ela escolheu para trilhar terminaria em destruição, decidi seguir pelo
mesmo caminho que ela.
Como na
hora em que Ellenia vasculhava o casarão de Marcos. A fim de proteger Aria, a
empregada vestiu a capa vermelha de sua filha e sequestrou Ellen, ameaçando-a para
que a Legião deixasse a cidade.
Pressentindo
a conclusão terrível que aquela conversa estava tomando, Bianca socou a janela
do quarto.
— Ei... O
que você está pensando em fazer?!
— O meu
silêncio destruiu a vida de Aria... Eu sou a desgraça que tirou a sua
inocência...
O som
estridente de um móvel sendo arrastado ecoou e, poucos segundos depois, o
silêncio retornou. A chama da vela que
iluminava o quarto da empregada foi extinguida com um único sopro, e um frio
repentino envolveu o corpo de Bianca.
Em pânico,
a garota de cabelos pretos correu, deu a volta no casarão e o invadiu antes que
o guarda tivesse tempo para reagir.
— Ei você!
Pare agora!
O guarda
gritou, mas Bianca não parou. Ela atravessou a sala de estar e o corredor onde
ficavam os quartos de hospedes, parando na frente do penúltimo cômodo, onde
vivia a empregada.
— Não faça
nenhuma besteira! — Girou a maçaneta da porta, mas a mesma estava trancada. — Você
pode ter errado ao deixar de lutar para ficar com a sua filha, mas não quer
dizer que esse erro não possa ser reparado. Ficando ao lado dela você pode
propiciar um futuro melhor para a sua filha. Você não pode simplesmente fugir!
Isso fará com que Aria sofra ainda mais!
Bianca
socou a porta até que o guarda a alcançou e começou a puxá-la para longe.
— Ninguém
pode entrar ou sair deste quarto!
— Por favor!
Abra essa porta agora antes que seja tarde demais!
O desespero
explicito de Bianca foi o suficiente para convencer o guarda. Ele a soltou e
sacou um maço de chaves.
— Irei
abrir, então acalme-se.
A chave girou
na fechadura e a porta foi aberta. O silêncio mórbido que veio a seguir marcou
com tinta vermelha as páginas da história.
Lágrimas corriam
sem controle pelo rosto de Bianca. Sua visão estava embaçada e seu coração
ferido por uma impiedosa amargura.
Na
escuridão daquele pequeno quarto, a garota de cabelos pretos fez a mais
importante decisão de sua vida. De uma vez por todas ela salvaria Aria, não
importando o método necessário para que essa meta fosse cumprida. Bianca estava
disposta a tudo para completar a missão que a empregada não foi capaz de
cumprir.
— Mesmo que
todos os outros tenham te renegado... Mesmo que todos os outros tenham pisado
nos seus sentimentos... — Bianca respirou fundo e fitou a empregada com um
olhar solitário. — Pelo menos uma única vez, nesta única noite... Haverá alguém
que chorará por você. Ao menos uma vez, nesta longa noite... Haverá alguém para
lamentar a sua perda...
O coração
da garota de cabelos pretos doía como se estivesse sendo partido ao meio, mas
de certa forma, ela já estava se acostumando com aquela dor em particular. Desde
que Bianca descobriu que sua melhor amiga era a pessoa de capuz vermelho, seus
sentimentos haviam mudado consideravelmente.
Ela estava
triste, é claro, mas também estava mais forte. O sofrimento havia dado forças
para que ela pudesse lutar pelos seus desejos.
Todos evoluímos ao experimentar
diferentes tipos de situações e sentimentos. Apenas os gananciosos ficam ricos,
apenas a vingança te deixa mais poderoso, apenas a fé é capaz de unir milhares
de pessoas em nome de um único objetivo.
Bianca
deixou o quarto e correu desesperadamente pelo casarão. O guarda sequer a
seguiu dessa vez, tamanha era a perplexidade que sentia ao presenciar um
suicídio.
Sinceramente, eu aprecio os seus
esforços, mas esta é provavelmente a última vez em que nos encontraremos.
— Não! De
forma alguma deixarei que esse seja um adeus!
Antes de
sair do casarão, um objeto caído sobre o chão chamou a atenção de Bianca. Era
uma pistola antiga que o guarda havia deixado cair enquanto a perseguia.
Sem hesitar,
a garota de cabelos pretos pegou a arma. Sua mente estava em branco, mas seu
objetivo nunca esteve tão claro.
Eu...
...Quero salvar você.
Eu...
...Quero que você seja feliz.
◊
◊ ◊
O sol
vermelho erguia-se imponente no céu, destruindo completamente as trevas que
dominavam a Floresta de Caaporã. Uivos estridentes e o ranger de dentes cortavam
o ar da manhã.
Centenas de
animais selvagens levantavam uma grande nuvem de poeira a medida que encurralavam
as suas presas.
Era o início de uma caçada.
Aria,
trajando uma capa com capuz, parou seu cavalo há dez passos do pequeno exército
que Ellen e Adam haviam montado.
— Nos
encontramos novamente, chapeuzinho.
Ellen falou
com um sorriso, sacando o Sensorium de Owen.
Sem uma
única palavra, Aria ergueu sua mão direita. As duas centenas de lobos que
estavam sobre o seu controle avançaram com uma saudosa sede de sangue em seus
olhos, sem piedade, sem misericórdia.
Uma chacina
estava prestes a ter início.
◊
◊ ◊
Em
Jothenville, Bianca se aproximou de uma entrada para os túneis subterrâneos.
—
Desculpe-me, Aria... Eu não posso permitir que você continue com isso... — Ela
apertou o punho da pistola com força e encheu os pulmões com o ar frio da manhã.
— Com certeza te salvarei das trevas que aquele homem impôs a você.
A fim de
dar um fim ao sofrimento de sua amiga, Bianca desceu pelo alçapão rumo à
escuridão do subterrâneo.
Era o início de uma missão de resgate.
Com certeza te salvarei das trevas que você
impôs a si mesma.
Um novo
desejo corrompido havia nascido.
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