A Rosa Fantasma - Crianças Movidas Pela Fé, Vingança e Desespero III



O veneno, a despedida, e a vela que nunca iluminará. 



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Interlúdio 2

Crianças Movidas Pela Fé, Vingança e Desespero Pt.3

21
00:37 A.M – Jardim dos Mortos
Aquele cenário parecia ter saído de um conto de fadas. A luz prateada que atravessava o espeço domo de vidro era refletida pelo piso de granito polido, dispersando toda a iluminação pelo ambiente. Apesar de ainda ser madrugada, toda a estufa brilhava como um gigantesco diamante bruto.
Era o cenário perfeito para uma despedida.
O aroma misterioso que vagava pelo ar era viciante, atordoador, como uma droga poderosa, imaculada, impiedosa. Incontáveis plantas de diferentes espécies formavam um labirinto fantasmagórico, frio e incompreendido. Talvez bastasse apenas um pouco da luz solar para que todas aquelas plantas pudessem enfim, florescer.
No centro da estufa estavam Bianca e Aria. O grande espelho de mentiras que separavam as duas caia aos pedaços à medida que os pecados do passado eram confessados.
— Decidimos que os portões de Jothenville permaneceriam fechados, pois era necessário fazer constantemente testes em seres vivos para a criação e aperfeiçoamento da ‘cura’. — Aria ponderou por alguns segundos. — Mesmo com quase 3000 cobaias à disposição, o único resultado proveniente das pesquisas de Marcos foram os Meio-Humanos. Seres irracionais, movidos pela ganância e pela insanidade. Apesar de possuírem uma grande resistência a ferimentos e um incrível raciocínio evolutivo, eles morrem. Marcos não foi capaz de criar uma ‘criatura perfeita’, muito menos uma cura para a morte.
— A população de Jothenville... Todas aquelas pessoas desaparecidas... — Bianca havia atingido o seu limite. — Desde que essa feiticeira entrou na sua vida, você tem sido usada e manipulada... Ela te mudou tanto, que neste momento eu mal posso te reconhecer.
Ao ouvir a resposta fria da garota de cabelos pretos, as pernas de Aria começaram a tremer em pânico crescente.
Fui negligente. Por não suportar mentir para ela, acabei revelando a minha verdadeira face. Agora que ela sabe o quão podre eu sou por dentro, com certeza serei odiada.
— Durante essa semana, acompanhei de perto o desespero dessas pessoas, mas em nenhum momento senti pena ou compaixão por elas. Sequer pensei no quanto estavam sofrendo.  — A loira sussurrou, sentindo nojo de si mesma. — Hoje, pela primeira vez, usei o meu poder para feri-los diretamente... Aconteceu tão rápido que sequer olhei para o rosto deles... — Durante a batalha contra os guardas nos túneis subterrâneos, a única coisa que passava pela mente de Aria era proteger seu pai e, consequentemente, a única chance de ressuscitar Sarah. — Como se fosse algo normal, tentei matar Owen... Se ele não tivesse desviado, o lobo que eu controlava teria arrancado a cabeça dele. Antes que eu percebesse, havia destruído os poucos bens que fui capaz de juntar. Descartei os meus relacionamentos, meu futuro, minha alma, tornando-me o pior dos monstros. Este poder está me controlando aos poucos, eu posso sentir. Em pouco tempo terei me tornado um demônio por completo...
Aria se abraçou com uma expressão dolorosa no rosto, desejando fugir para o mais longe possível de Bianca e seu julgamento.
— ...Como você pode ter tanta certeza de que esta mulher é minha mãe...?
Bianca desviou o olhar para a mulher dentro do caixão.
— Eu... presenciei o momento em que você foi encontrada por Abadia e Dio, então não restam dúvidas.
Logo após o jantar com Owen e Ellen, Bianca havia ido até o armazém da hospedaria atrás de alguns utensílios que sua mãe havia pedido. Após abrir a porta, Bianca acabou encontrando sua amiga no exato momento em que ela vestia a capa vermelha.
— Quando te encontrei no armazém, por que mentiu para mim? Por que me fez acreditar que a Legião era a responsável pelo que vinha acontecendo em Jothenville?
Aria hesitou por quase um minuto, mas no fim decidiu revelar os seus sentimentos.
— Menti por que fiquei com medo... Pois sabia que você nunca mais me olharia da mesma maneira se soubesse da verdade.
Finalmente chegou a hora do veredito. Aria reuniu coragem e olhou nos olhos de Bianca. Ao notar a feição perturbada na face da sua antiga amiga de infância, lágrimas de desespero começaram a descer pelo seu rosto.
Aparentemente eu estava certa... Seus olhos só expressam pavor e medo...
...Olhos idênticos aos do seu pai, cheios de nojo, desprezo e repulsa... Isso é tudo que ela sente por você agora.
O corpo de Aria estremeceu assim que uma voz firme ecoou dentro da sua cabeça. Antes ela pensava que aqueles sussurros eram apenas ecos dos seus pensamentos, mas nesse momento ficou claro que aquela voz tinha uma origem diferente.
A maldição que se escondia dentro do corpo de Aria possuía uma consciência própria. E essa consciência estava ficando cada vez mais forte com o passar do tempo.
No final, sua preciosa amiga também te descartou. Os laços que você tanto valorizava quebraram-se facilmente como fios de seda.
Não! Bianca não me abandonaria... Desde que nos conhecemos, ela sempre esteve do meu lado... Ela sempre esteve presente quando eu precisava de alguém para me apoiar...
Uma gargalhada sarcástica.
Mate-a.
[.......]

Se você deseja mesmo trazer a sua mãe de volta à vida, Bianca tem que morrer. Esta é uma das condições que eu imponho para realizar o seu desejo.
Uma grande batalha mental teve início, onde a consciência que saísse vencedora ganharia o controle do corpo físico de Aria.
Bianca é o único obstáculo que te impede de alcançar a verdadeira liberdade. Enquanto ela respirar, você estará destinada ao fracasso. E no seu caso, o fracasso significa a morte.
Cale-se...
Mate-a.
Fique calada!
MATE-A, ANTES QUE ELA TENHA A OPORTUNIDADE DE TE TRAIR!!
A voz de repente tornou-se gutural, como a de um demônio. A força que aquelas palavras impunham forçaram Aria a cair de joelhos, em pânico absoluto.
— Aria?! O que houve?!
Bianca correu ao encontro da loira, apoiando-a antes que ela caísse no chão.
— VÁ EMBORA! Eu não preciso de alguém sentindo pena de mim! — Ela levou as mãos à cabeça, desesperada. — Deixe-me sozinha, por favor... Eu não suporto que você me olhe desta maneira... Não quero fazer com que você me odeie ainda mais...
— Não irei embora... — Bianca abraçou-a com força. — Como eu poderia te abandonar no momento em que você mais precisa de ajuda? Como eu poderia te abandonar no momento em que você finalmente conseguiu se abrir para mim...
Enquanto desabafava, uma importante recordação passou pela sua mente.

“Bianca, alguma vez você parou para pensar em como será a sua vida no futuro?”
Aria perguntou.
“Hum... Acho que no momento não possuo uma grande ambição. É bem provável que eu acabe cuidando da pensão com a minha mãe.”
Bianca respondeu em meio a risadas.
“Eu... quero fugir desta cidade...”
Aria ergueu a cabeça e olhou para a imensidão no horizonte.
“Eh? Mas por quê?”
“Você não entende? O mundo é gigantesco, Bianca. Sonho todas as noites com as maravilhas que devem existir fora destas muralhas. Quero viajar e conhecer pessoalmente todos os paraísos escondidos abaixo do céu...”
Bianca sorriu ao notar o olhar de admiração no rosto da sua amiga.
“Tenho que admitir que essa é mesmo uma grande ambição. Pensando bem, deve ser incrível viajar por todo o planeta, conhecer todos os tipos de culturas e costumes. Seria a realização de um sonho...”
Aria deu um sorriso iluminado.
“Então por que você não vem comigo?! Não precisa decidir agora. Te darei algum tempo para pensar.”
Bianca acenou com a cabeça.
“Pensarei seriamente na sua oferta.”

— Mesmo estando sempre ao seu lado, eu nunca fui capaz de notar o quanto você estava sofrendo... Mesmo me autodenominando sua melhor amiga, nunca fui capaz de ver por detrás de todos os seus sorrisos, de todas as suas gentilezas... — As lágrimas de Bianca caiam sobre o rosto da loira. Eram tristes e quentes, mas de certa forma, reconfortantes. — Durante todos esses anos eu fui tão... inútil! Eu queria ter sido capaz de te ajudar antes, eu queria ter sido capaz de salvá-la de toda essa angustia!
A voz gutural que gritava na mente de Aria havia silenciado. Os pensamentos dela estavam limpos pela primeira vez nesta longa semana.
Bianca apoiou a cabeça de Aria sobre o seu ombro.
— Há algum tempo atrás você me convidou para fugirmos desta cidade, lembra? Sair e ver todas as maravilhas espalhadas pelo mundo... — Bianca respirou fundo numa tentativa de se acalmar. — Vamos embora... Apenas nós duas... Não me importo de deixar tudo para trás contanto que você esteja comigo...
Aria deu um sorriso torto.
— Durante toda a minha vida desejei um poder que fosse capaz de reconstruir a minha família. Transformar essa cidade e criar um futuro onde eu fosse aceita por todos. — Aria fitou o céu escuro através do domo de vidro. — Mas o futuro que Owen me mostrou é completamente oposto àquele que tanto desejo. Os crimes que cometi são imperdoáveis... Se fugirmos, a Legião nos perseguirá pelo resto de nossas vidas. Se formos pegas, seremos punidas com tortura e esquartejamento... — Aria tocou o rosto Bianca carinhosamente. — Não posso levá-la comigo, pois seria o mesmo que entregá-la de bom grado para a morte. Não há um futuro feliz reservado para nós...
— Você ainda não entendeu? Não sairei do seu lado nunca mais...
Bianca levantou e, após um sorriso, ofereceu sua mão direita. Aria lembrou imediatamente da noite em que elas se conheceram.
— Essa é a segunda vez que você estende a sua mão para mim... A segunda vez que você me salva... — Com a ajuda da garota de cabelos pretos, Aria se levantou. — Eu nunca agradeci, não é. Nem mesmo uma única vez.
— Não há nada para agradecer...
— Está errada. Se você não tivesse tomado a iniciativa para falar comigo, minha infância não teria sido tão alegre. Todas as brincadeiras, todas as risadas, todas as aventuras... Finalmente percebo que eu tinha uma ótima vida nas mãos. — Aria sorriu. Um sorriso verdadeiro, diferente de todos os outros que Bianca já havia presenciado durante todos esses anos de convivência. — Muito obrigado, por tudo. 


Aah... Como você é fraca, Aria Amarante Arthmael...

Não que isso importe. Na verdade foi até melhor assim, pois no momento em que o seu coração fraquejou, eu venci.

Aria abraçou Bianca uma última vez e, em seguida, acertou o estômago dela com um soco, poderoso o suficiente para fazê-la cair de joelhos.
— Agh... Aria...?
Símbolos tribais começaram a transparecer na pele da mulher loira. Seus olhos azuis ganharam aos poucos um tom vermelho sangue, apagando seu brilho natural.
— Quem diabos é você...? O que fez com a Aria!
Bianca sussurrou, ainda atordoada por causa do golpe repentino.
— O que sou? Como explicar de uma forma que você entenda? Eu sou a existência que invadiu o corpo de Aria sete dias atrás. A escuridão que manteve-se oculta no fundo deste coração até esse exato momento. — A loira gargalhou sadicamente. — Assim que a antiga Aria desistiu de seus objetivos, eu encontrei uma brecha para escapar... Aah... É tão bom respirar novamente!
— Traga-a de volta... Traga Aria de volta, AGORA!
Bianca gritou, furiosa.
— Antes de qualquer coisa, deixe-me explicar algo importante. Não acredito que você verá a sua querida Aria novamente. — A loira repousou seu dedo indicador sobre os lábios de Bianca. — Veja bem, todas as pessoas são movidas essencialmente por quatro coisas: Fé, vingança, desespero e amor. De todos eles, o amor é o único sentimento que tem o poder de enfraquecer uma pessoa. Aria perdeu a posse de seu corpo no momento em que deixou esse sentimento nojento dominar o seu coração. — Ela gargalhou, em êxtase. — Por isso a humanidade é tão imprevisível! Todos evoluímos ao experimentar diferentes tipos de situações e sentimentos, onde graças a essas experiências, nascem os vencedores e os perdedores. Talvez você já tenha ouvido falar que o amor move as pessoas, mas pense por um segundo. Você não fica mais forte ao amar alguém, muito pelo contrário, você apenas ganha uma grande fraqueza a ser explorada. Apenas os gananciosos ficam ricos, apenas a vingança te deixa mais poderoso, apenas a fé é capaz de unir milhares de pessoas em nome de um único objetivo.
— O que você quer dizer com isso...?
Bianca murmurou, sentindo que algo terrível viria a acontecer se ela não fosse capaz de parar Aria.
— Não ficou óbvio? Sua preciosa Aria nunca mais retomará o controle deste corpo, pois ela se tornou fraca graças ao amor que sente por você.
Bianca mordeu o lábio inferior.
— Não deixarei que você vença... Eu trarei Aria de volta custe o que custar!
A loira sorriu ironicamente.
— Sinceramente, eu aprecio os seus esforços, mas esta é provavelmente a última vez em que nos encontraremos. — Por ser familiarizada com a anatomia humana e seus pontos de pressão, Aria precisou de apenas um golpe para deixar Bianca inconsciente. — Adeus, minha mais preciosa amiga. Espero que possamos nos encontrar novamente em uma outra vida... Talvez lá tudo possa ter um fim diferente...
A loira deitou-a cuidadosamente sobre o chão da estufa, ao lado do caixão onde Sarah repousava. Logo após deixou aquele lugar, sem olhar uma última vez para aqueles que ficavam para trás no Jardim dos Mortos.
22
02:52 A.M – Casarão de Marcos
As noites de Bianca costumavam ser tranquilas. Boa parte delas passadas no conforto da pensão de sua família, numa rotina que consistia basicamente em um jantar com seus familiares seguido por uma rápida noite de sono. Por ironia do destino, a primeira madrugada que ela passava acordada havia se tornado o pior pesadelo de sua vida.
Após acordar sozinha na estufa, Bianca revirou todos os cômodos da capela antes de sair pela cidade a procura de Aria. Quase uma hora de busca depois, ela parou na frente do casarão de Marcos Arthmael.
Com exceção das lamparinas no lado de fora, todas as outras luzes estavam apagadas. Guardando a entrada estava um único soldado armado, quase cochilando ao lado da porta. Evitando chamar atenção, Bianca silenciosamente deu a volta na residência e fitou o quarto de Aria, notando a ausência de luz.
— Será que você também não está aqui...?
Ela provavelmente está com Marcos no subterrâneo...
O medo que a afligia cresceu ainda mais. Bianca tentava de todas as formas encontrar uma maneira de ajudar a sua amiga, mas quanto mais pensava, mais sua mente ficava em branco. Ela não era capaz de prever o que viria a seguir, mas uma coisa era certa: A vida de toda a população de Jothenville estava em jogo.
Enquanto seguia rumo a saída, Bianca notou uma luz avermelhada que atravessava as frestas rasas de uma janela de madeira no primeiro andar.
O quarto da empregada...
Ela se aproximou e tentou olhar pelas frestas, mas a única coisa que pode ver foi o tremular da chama de uma vela.
— Quem está ai?
A voz seca da empregada mal foi capaz de alcançar os ouvidos da garota de cabelos pretos.
— Sou eu, Bianca, amiga de Aria. Lembra-se de mim?
— Você tem ideia de que horas são? O que está fazendo aqui?
Apesar do tom irritado, sua voz não passava de um sussurro.
— Precisamos conversar... sobre a sua filha.
O som de algo se quebrando ricocheteou pelas paredes do quarto. A empregada havia deixado cair a xicara que segurava, tamanho o choque causado pela frase de Bianca.
— Por quê...? Como você... sabe disso...?
— Aria me contou a verdade sobre tudo relacionado aos lobos e a pessoa de capuz vermelho... — Bianca se apoiou na parede ao lado da janela, de onde podia ouvir a respiração ofegante da empregada. — ...Inclusive sobre você ter escondido que era a verdadeira mãe dela...
— Ela sabia?!
A empregada levantou seu tom de voz pela primeira vez.
— Aria... não chegou a contar que sabia sobre você...?
Pensando bem, nenhuma vez ela mencionou que outras pessoas além de Marcos sabiam da existência de sua mãe de sangue. Ah, não... Eu posso ter cometido um grande erro agora.
Mal sabia Bianca que ela havia incitado a fagulha para um novo desastre.
— Ah... Durante toda essa semana Aria esteve ciente de que eu era a mãe dela... Já era de se esperar, considerando o modo como ela vinha manipulando Marcos... — A empregada começou a chorar em silêncio. — Agora entendo o porquê dela sequer olhar para o meu rosto. Em vez de me encarar, ela preferiu se afastar. Ela sabia que agir friamente comigo era a mais cruel punição...
— Ainda há tempo de corrigir os seus erros! Tenho certeza de que Aria não odeia você. Ela apenas está confusa por ter descoberto a história de sua vida pela boca de outra pessoa... É necessário apenas uma conversa sincera com a sua filha para que tudo se resolva. Ainda não é o fim...
— Aria... sabe quem é o assassino de Sarah...? — Bianca moveu a boca três vezes, mas sua voz se negou a sair. — Acho que o seu silêncio respondeu a minha pergunta... — Uma risada fraca escapou pelos lábios trêmulos da empregada. — Ah... Ela deve mesmo me odiar... Todas as vezes que nos encontrávamos, uma feição enojada tomava o seu rosto. Ela deve ter desejado a minha morte durante cada segundo desta maldita semana!
— Ela não pensa assim, acredite! Eu sei que você está arrependida, também sei que Aria entende o quanto você sofreu para poder ficar ao lado dela! Deve ter sido desesperador viver todos esses anos sobre o mesmo teto que sua filha sem poder revelar a verdade para ela, mas nesta noite você pode dar um rumo diferente a essa história! Nesse momento você é a única capaz de salvar Aria da sua autodestruição.
Autodestruição, a melhor definição para o desejo que Aria buscava realizar nesse momento.
— Estava me perguntando que fim tomou a garota gentil que vi crescer... Me perguntava o que teria acontecido de tão ruim para ter desfigurado tanto os sentimentos dela... Mas em nenhum momento passou pela minha cabeça que eu tinha sido o gatilho... — A empregada soluçava a cada poucas palavras. — Mesmo sem entender o que estava acontecendo, apoiei as decisões dela das sombras. Mesmo sabendo que a estrada que ela escolheu para trilhar terminaria em destruição, decidi seguir pelo mesmo caminho que ela.
Como na hora em que Ellenia vasculhava o casarão de Marcos. A fim de proteger Aria, a empregada vestiu a capa vermelha de sua filha e sequestrou Ellen, ameaçando-a para que a Legião deixasse a cidade.
Pressentindo a conclusão terrível que aquela conversa estava tomando, Bianca socou a janela do quarto.
— Ei... O que você está pensando em fazer?!
— O meu silêncio destruiu a vida de Aria... Eu sou a desgraça que tirou a sua inocência...
O som estridente de um móvel sendo arrastado ecoou e, poucos segundos depois, o silêncio retornou.  A chama da vela que iluminava o quarto da empregada foi extinguida com um único sopro, e um frio repentino envolveu o corpo de Bianca.
Em pânico, a garota de cabelos pretos correu, deu a volta no casarão e o invadiu antes que o guarda tivesse tempo para reagir.
— Ei você! Pare agora!
O guarda gritou, mas Bianca não parou. Ela atravessou a sala de estar e o corredor onde ficavam os quartos de hospedes, parando na frente do penúltimo cômodo, onde vivia a empregada.
— Não faça nenhuma besteira! — Girou a maçaneta da porta, mas a mesma estava trancada. — Você pode ter errado ao deixar de lutar para ficar com a sua filha, mas não quer dizer que esse erro não possa ser reparado. Ficando ao lado dela você pode propiciar um futuro melhor para a sua filha. Você não pode simplesmente fugir! Isso fará com que Aria sofra ainda mais!
Bianca socou a porta até que o guarda a alcançou e começou a puxá-la para longe.
— Ninguém pode entrar ou sair deste quarto!
— Por favor! Abra essa porta agora antes que seja tarde demais!
O desespero explicito de Bianca foi o suficiente para convencer o guarda. Ele a soltou e sacou um maço de chaves.
— Irei abrir, então acalme-se.
A chave girou na fechadura e a porta foi aberta. O silêncio mórbido que veio a seguir marcou com tinta vermelha as páginas da história.


Lágrimas corriam sem controle pelo rosto de Bianca. Sua visão estava embaçada e seu coração ferido por uma impiedosa amargura.
Na escuridão daquele pequeno quarto, a garota de cabelos pretos fez a mais importante decisão de sua vida. De uma vez por todas ela salvaria Aria, não importando o método necessário para que essa meta fosse cumprida. Bianca estava disposta a tudo para completar a missão que a empregada não foi capaz de cumprir.
— Mesmo que todos os outros tenham te renegado... Mesmo que todos os outros tenham pisado nos seus sentimentos... — Bianca respirou fundo e fitou a empregada com um olhar solitário. — Pelo menos uma única vez, nesta única noite... Haverá alguém que chorará por você. Ao menos uma vez, nesta longa noite... Haverá alguém para lamentar a sua perda...
O coração da garota de cabelos pretos doía como se estivesse sendo partido ao meio, mas de certa forma, ela já estava se acostumando com aquela dor em particular. Desde que Bianca descobriu que sua melhor amiga era a pessoa de capuz vermelho, seus sentimentos haviam mudado consideravelmente.
Ela estava triste, é claro, mas também estava mais forte. O sofrimento havia dado forças para que ela pudesse lutar pelos seus desejos.

Todos evoluímos ao experimentar diferentes tipos de situações e sentimentos. Apenas os gananciosos ficam ricos, apenas a vingança te deixa mais poderoso, apenas a fé é capaz de unir milhares de pessoas em nome de um único objetivo.

Bianca deixou o quarto e correu desesperadamente pelo casarão. O guarda sequer a seguiu dessa vez, tamanha era a perplexidade que sentia ao presenciar um suicídio.

Sinceramente, eu aprecio os seus esforços, mas esta é provavelmente a última vez em que nos encontraremos.

— Não! De forma alguma deixarei que esse seja um adeus!
Antes de sair do casarão, um objeto caído sobre o chão chamou a atenção de Bianca. Era uma pistola antiga que o guarda havia deixado cair enquanto a perseguia.
Sem hesitar, a garota de cabelos pretos pegou a arma. Sua mente estava em branco, mas seu objetivo nunca esteve tão claro.

Eu...
...Quero salvar você.
Eu...
...Quero que você seja feliz. 

◊ ◊ ◊

O sol vermelho erguia-se imponente no céu, destruindo completamente as trevas que dominavam a Floresta de Caaporã. Uivos estridentes e o ranger de dentes cortavam o ar da manhã.
Centenas de animais selvagens levantavam uma grande nuvem de poeira a medida que encurralavam as suas presas.
Era o início de uma caçada.
Aria, trajando uma capa com capuz, parou seu cavalo há dez passos do pequeno exército que Ellen e Adam haviam montado.
— Nos encontramos novamente, chapeuzinho. 
Ellen falou com um sorriso, sacando o Sensorium de Owen.
Sem uma única palavra, Aria ergueu sua mão direita. As duas centenas de lobos que estavam sobre o seu controle avançaram com uma saudosa sede de sangue em seus olhos, sem piedade, sem misericórdia.
Uma chacina estava prestes a ter início. 

◊ ◊ ◊

Em Jothenville, Bianca se aproximou de uma entrada para os túneis subterrâneos.
— Desculpe-me, Aria... Eu não posso permitir que você continue com isso... — Ela apertou o punho da pistola com força e encheu os pulmões com o ar frio da manhã. — Com certeza te salvarei das trevas que aquele homem impôs a você.
A fim de dar um fim ao sofrimento de sua amiga, Bianca desceu pelo alçapão rumo à escuridão do subterrâneo.
Era o início de uma missão de resgate.
Com certeza te salvarei das trevas que você impôs a si mesma.
Um novo desejo corrompido havia nascido.   

- Próximo -


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